Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


13-05-2016

em entrevista ao Jornal da Manhã de Uberaba 14/03/2011


Historiadora de berço e formação é o que se pode dizer sobre Maria Antonieta Borges Lopes. Aos 70 anos, a uberabense nata credita seu entendimento sobre a história, bem como a abertura dos horizontes de sua visão de mundo, à formação familiar e das freiras dominicanas.

Viúva do médico Edison Reis Lopes – natural de São Paulo, mas formado na Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro e apaixonado por Uberaba –, Maria Antonieta teve três filhos, mas, mesmo dedicada à criação de sua própria família, nunca deixou de se preocupar com a formação de cidadãos críticos. Como educadora, ministrou aulas no Colégio Nossa Senhora das Dores e, logo depois de se formar em História, foi professora nas Faculdades Integradas Santo Tomás de Aquino (Fista) e nas Faculdades Integradas de Uberaba (Fiube), atual Universidade de Uberaba.

Embora o trabalho como educadora fosse prazeroso, Maria Antonieta Borges queria mesmo era colocar a mão na massa e viver como historiadora, entre pesquisas e levantamentos. Assim atuou como presidente da Fundação Cultural de Uberaba, historiadora na montagem do Museu do Zebu, na Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ) e na Fosfertil.

Sem se esquecer do papel formador e como lutadora ferrenha pela preservação histórica municipal, dedicou-se à veia literária, escrevendo livros sobre Uberaba. Nas próximas linhas, em entrevista ao Jornal da Manhã, os leitores poderão conhecer um pouco da história dessa mulher batalhadora.
 

Jornal da Manhã – Quem é Maria Antonieta Borges Lopes?

Maria Antonieta Borges Lopes – Sou uberabense com prazer. Meus pais são de Uberaba e, por isso, passei toda minha vida e tive minha formação nesta cidade. Meu pai, José Carlos Machado Borges, gostava de trabalhar com genealogias, então, fez a árvore dos quatro troncos da família dele e da minha mãe, Guiomar Gomes Borges. Esse trabalho do papai, de recuperação da memória da família, foi importante para ele e para nós, seus filhos. Ele levou dez anos, exaustivamente, fazendo levantamento de dados. Minha mãe era filha de fazendeiros e, por isso, a fazenda dos meus avós e tios foi algo muito presente na minha infância. Depois do ensino doméstico, sempre estudei no Colégio Nossa Senhora das Dores. Lecionei lá, fiz História na Fista, onde também dei aulas por muitos anos, depois, na antiga Fiube e na Faculdade de Filosofia em Uberlândia, antes de federalizarem. Sou de uma família grande, de cinco irmãos. Atualmente, em Uberaba, tenho apenas um irmão e uma irmã; os outros moram fora, mas fomos criados com muita parcimônia. Meu pai era contador, tinha uma porção de firmas na cidade, e minha mãe era costureira, modista mesmo. Adorava costurar, sobretudo quando os modelos eram mais difíceis, mas ela gostava. Foi uma vida tranquila. Durante a vida toda, vimos nossos pais trabalhando para dar conta dos cinco filhos. Lembrando o passado, encontro muitas alegrias, alguns sofrimentos, mas isso é normal da vida.

 

JM – O que foi marcante em sua infância e na relação com seus pais?

MABL – O que mais marcou na minha infância foi minha mãe, uma presença muito forte. Ela estudou em escola rural, porque meu avô morava em fazenda e naquela época levava-se um professor que dava aula para os 10 filhos, mais dois sobrinhos e uma menina criada com minha avó. Só depois é que os homens vinham para a cidade para continuar a formação, mas as mulheres encerravam na quarta série primária. Ela trabalhava muito, mas o interessante é que ela escrevia muito bem. Tenho registros de que até a oitava série ela ainda me ensinava, corrigia as redações e opinava. Então, imagine, era uma mulher com formação primária e rural e que escrevia incrivelmente bem, mas porque gostava muito de ler. Meu pai sempre teve uma biblioteca grande. Ela vivia dentro do escritório lendo, lendo e lendo, e acredito que esse exemplo de trabalho e de estudo foi algo que herdamos. Nos tempos de férias, eu passava pelo menos três meses na fazenda de tios e avós. Uma tia era dona de fazenda que ficava em frente da estação de Batuíra e, como naquele tempo havia trem de passageiros, íamos de maria-fumaça ou de carro. Por lá, assistíamos às folias de Reis, e em junho aconteciam as festas juninas, que meu pai fazia todos os anos, com bandeira, fogueira, bombinhas, espanta-coió e os pratos típicos. Essas lembranças do tempo de passeios e férias na fazenda são agradáveis. Moramos muito tempo na rua do Carmo, próximo às faculdades, e quando chegamos à adolescência, começamos a ficar de olho comprido nos namoros, a conhecer os moços, o que era facilitado [risos] porque havia várias repúblicas.

 

JM – A senhora mencionou as brincadeiras na fazenda durante a infância... Como vê a infância de hoje?

MABL – As brincadeiras mudaram. Nós vivemos a era pré-digital, com livros que meu pai nos dava. Lembro-me que em um Natal ganhamos um livro de capa dura, chamado Simbá – O marujo. Era um livro de aventuras e nós o disputávamos, mas sempre tivemos acesso à leitura não só porque tínhamos o escritório de meu pai, como íamos à Biblioteca Municipal. Já no Colegial, eu e minhas amigas nos comprometemos a dar livros de presente. E muitas brincadeiras naquela época eram inventadas e fabricadas por nós; não íamos à loja comprar brinquedos. Na cidade, fazíamos teatros com lençol, velas e recortes, e na fazenda fabricávamos com frutas os porcos, as galinhas, as vacas e guardávamos no curral, que construamos com gravetos. Isso não existe mais. Acredito que, como os brinquedos de hoje já vêm prontos, não estimulam a criatividade como antigamente.

 

JM – Qual foi a importância da formação dominicana em sua vida?

MABL – As dominicanas tinham projeto de educação que, acredito, era avançado para a época. É claro que nem todas as irmãs tinham o mesmo entendimento, mas aquelas com boa formação me influenciaram muito. Irmã Loreto, que ainda é viva; irmã Georgina, que foi diretora da Fista; irmãs Heloísa e Rafael sabiam nos ensinar, formando o espírito de contribuição e o amor ao trabalho, o compromisso com as mudanças sociais necessárias ao nosso país.

 

JM – Para a senhora, qual o valor da educação para o ser humano?

MABL – A educação é o que forma o caráter para o trabalho, para aproveitar bem os prazeres da vida, encaminhar e abrir horizontes. Cada disciplina que fazemos ao longo da vida abre uma janela para enxergarmos um aspecto de visão do mundo. E essa questão da visão de mundo e o engajamento na tentativa de mudar esse mundo somente a educação pode nos dar. Quanto à cidadania que está na boca de todo mundo, sempre digo que nunca teremos uma democracia e um cidadão bem formado enquanto não se investir na educação pública, porque é ela que atinge a todos. A escola pública, seja inicial ou superior, foi boa por um tempo, depois passou anos e anos decadente, sobretudo no tempo em que se preferiu a quantidade à qualidade. Pessoas foram formadas, mas sem verdadeiro acesso à cultura. Tinha contato com o conteúdo, mas sem a visão de mundo. A retirada de disciplinas como Filosofia e Sociologia do currículo fez falta às pessoas. Hoje já se encara como sendo necessárias. Quanto a História, por exemplo, muitos alunos se queixam porque têm de aprender sobre o passado, o que exige ao educador mostrar a importância do conhecimento.

 

JM – E no caso da História, o que a disciplina pode proporcionar?

MABL – Acredito que a História é fundamental para que cada um de nós conheçamos a nossa capacidade de interferir nas decisões. Conhecendo a história da cidade, do local onde vivemos e a nossa própria, que são as primeiras instâncias onde podemos agir na tentativa de mudar para melhor é essencial. Não se valoriza algo que não se conhece. O conhecimento da história foi muitas vezes relegado a segundo plano, considerada uma disciplina de “decoreba”. Alguns professores mesmo, ao invés de encaminhar para espírito crítico, acabavam se desviando das análises e interpretações dos acontecimentos. Esse espírito de compreender seu país, sua cidade, as necessidades e a formação do povo brasileiro, proporcionado pela história, é importante para entendermos criticamente a realidade e sabermos até que ponto podemos transformá-la. E sem as distorções de achar que a história é uma só. Na história não há verdades, há versões. À medida que a história foi evoluindo, incluindo novas abordagens, objetos, abandonando a prisão aos fatos políticos e econômicos, a história social, das mentalidades, da cultura popular, foi sendo incorporado aos estudos e, sem dúvida, colocou o povo em evidência e pode interessar mais.

 

JM – Atualmente, a senhora desenvolve projetos na Casa do Menino, que é local de recuperação e apoio a adolescentes carentes...

MABL – Desde a sua fundação, há uns 30 anos, havia internato e passou-se a ideia de que a casa seria uma espécie de reformatório, o que não é verdade. Hoje, não há internos e trabalhamos com adolescentes de 12 a 17 anos, que vivem de alguma forma em situações precárias ou de risco. E o que a instituição quer dar a esses meninos e suas famílias é formação técnica, com reforços escolares e cursos de informática, Práticas Bancárias, eventualmente de pintura, desenho, manicure, cabeleireiro, bordado, dança e música, refeições e prática de esportes, em ginásio, piscina e campo. Temos projeto em parceria com a prefeitura e o que se pretende é dar a esses meninos uma formação humanística e tentar desenvolver neles valores, em um momento em que vivemos grave crise dos valores humanos e da ética, incorporando-os não só à vida do trabalho, mas principalmente à sociedade como bons cidadãos. Estamos tentando implantar alguns projetos, como no ano passado, quando tivemos um grupo de arquitetos e decoradores que nos ajudou na reforma da parte física da instituição. Com isso conseguimos oferecer ambientes limpos e agradáveis para estimular os jovens, que saem da rua, já que, para participar desses projetos, devem estar matriculados na escola pública.

 

JM – Não somente no Brasil, mas especialmente aqui, vemos desrespeito aos direitos da criança e do adolescente. Como a senhora vê essa questão?

MABL – É algo complicado no mundo inteiro, e em um país onde ainda há pobreza, analfabetismo, torna-se ainda mais complicado. E nem sempre a violência está relacionada apenas a esses meninos que dizemos estarem em situação de risco, pois a violência está nas famílias. Hoje em dia, depois da criação do Conselho Tutelar e dos Conselhos da Criança e do Adolescente, a questão tem sido mais observada e são órgãos que podem, inclusive, receber denúncias. Então, acredito que estamos começando a caminhar contra esse desrespeito, mas a violência doméstica e nas ruas continua muito grande. Há pouco tempo, houve uma discussão para retirar menores das ruas, já que ficam expostos a pessoas que promovem assédio sexual e oferecem drogas, e tudo isso é desrespeito. Ao mesmo tempo, acho incrível o número de adolescentes de todas as classes que se entregam às drogas e ao alcoolismo, problemas que em geral geram desrespeito dentro da família. Mas acredito que, se as pessoas continuarem a se envolver, de fato, com o tema, estaremos no caminho da solução.

 

JM – O que a senhora entende por liberdade e educação?

MABL – A educação é a mola mestra do progresso, seja a educação na escola, na sociedade ou na família, mas a questão da liberdade tem que perpassar por tudo isso, com um caráter mais democrático, respeitando-se as liberdades individuais e sociais. É como nos versos de Cecília Meireles sobre o tema. “Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. Liberdade é algo que vem de dentro para fora e há várias formas de expressá-la, seja abolindo seus preconceitos, uma família que se respeita ou através da escolha certa em um sistema democrático. Vemos atualmente no mundo islâmico essa luta por liberdade, mas não sabemos o que virá a partir dali, porque o que é liberdade para nós, ocidentais, é muito diferente do que é para eles. Analistas não acreditam que essa luta irá resultar em uma mudança realmente forte dos regimes autoritários sobre os quais sempre viveram. No Brasil, se contar o tempo em que vivemos sob o autoritarismo e a democracia, o primeiro é muito mais permanente e longo.

 

JM – Como historiadora, que críticas a senhora faz à política?

MABL – Sou da opinião que a falta da escola pública na formação dos cidadãos, que seja realmente formadora e orientadora, com profissionais valorizados e respeitados, tem influência real na questão política. Tivemos grandes ações nesse sentido, porém que ainda não implicam em transformações que de fato atinjam a escola pública. Vemos escolas particulares tentando se adequar e propor novos valores, com uma educação mais democrática para a formação de cidadãos, mas sabemos que o autoritarismo está muito presente nas relações humanas. Os políticos ainda são pouco comprometidos. Nossa democracia, na teoria, é representativa, mas na prática não é participativa. O próprio cidadão não sabe cobrar seus direitos, justamente por conta das falhas na sua formação educacional e social. Este é o grande problema não só da cidade como também do país, pois temos eleições livres, mas não temos participação. A lei existe, mas só no papel. Veja as Câmaras dos Deputados, os temas em que se envolvem, os maus exemplos de corrupção e inversão de valores. É importante o povo parar de votar naqueles que não os representam.

 

JM – Na história do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva marcou época como primeiro operário a se tornar presidente. Hoje, uma mulher, Dilma Rousseff, comanda os rumos do país. Atualmente, o deputado federal Tiririca (PR-SP), que precisou provar que sabia ler e escrever, integra a Comissão de Educação e Cultura...

MABL – Sabe, acho extremamente lamentável, parece até brincadeira, mas quem sabe se levando para lá outra visão de mundo, que ele não se deixe cooptar. A própria formação dele e suas falhas poderão dizer, como membro da Comissão de Educação e Cultura, o que está faltando. Não acredito muito, mas essas ironias nos fazem começar a pensar que é possível. Lula chegar ao poder foi uma conquista enorme, acho até que depois ele não correspondeu às maiores expectativas, mas sem dúvida fez políticas sociais que melhoraram a vida de muitas pessoas.

 

JM – Como historiadora, a senhora escreveu vários livros, mas um deles teve importância especial dentro da educação, que é Uberaba – Uma cidade entre sete colinas, adotado como livro didático nas escolas do município. Como iniciou esse projeto?

MABL – Este livro era um sonho que minha irmã Soledade Gomes Borges e eu conseguimos realizar. Minha irmã é pedagoga e sempre esteve envolvida com Educação Infantil. Resolvemos unir nossas experiências e aproveitar o convívio com adolescentes e jovens, como alunos nas escolas onde trabalhávamos, para produzir esse livro, voltado às crianças. Até então só havia um livro, há muitos anos, de uma professora sobre a história de Uberaba. Professores tinham que buscar as informações em obras, muitas vezes, de difícil acesso e antigas, com textos pesados, como o de Hildebrando Pontes ou Borges Sampaio e do professor José Mendonça. A nossa ideia foi fazer um material mais moderno e dinâmico sobre a história local, sua formação, desde o século 19, e seus potenciais. Abrimos questionamentos sobre política, economia e vida social que os próprios estudantes iriam, através de estudos, debates e entrevistas com pessoas dos bairros, responder e completar com novos dados. Paramos, pois iniciamos outros projetos, mas acredito que logo alguém nos sucederá, fazendo algo novo para as crianças.

 

JM – Como deixou a educação e iniciou estudos como historiadora?

MABL – Junto com Eliane Márquez fiz uma pesquisa sobre a história do Zebu e da ABCZ. Houve uma primeira edição, na década de 80, e a segunda, no ano 2002, saiu ampliada, com melhor apresentação gráfica. Depois disso, durante o tempo em que fiquei no museu, fiz trabalhos que gostei muito, como um estudo sobre a vida da mão-de-obra nas fazendas de criação, que eram a base da economia da cidade, em determinada fase. Com a colaboração da arquiteta Marília do Valle, fiz uma descrição histórica e arquitetônica das fazendas locais, reaproveitada pelo Museu do Zebu. Pesquisei sobre o surgimento do cooperativismo leiteiro na região e descobri que, em outros tempos, quem criava gado de leite era, de certa forma, desprezado. Mais recentemente, fiz levantamento para o Jornal da Manhã sobre a evolução da imprensa e do jornalismo investigativo no Brasil e em Uberaba. Além desses, houve o livro fotográfico sobre a história da cidade patrocinado pela Fosfertil. Tenho vontade, agora, de trabalhar com a vida privada e cotidiana, a história social dos uberabenses, revelando suas crenças e motivações.


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