28-11-2016 Fidel e Portugal - algumas estórias de uma relação nunca quebrada
Uma enorme foto do líder cubano Fidel Castro foi colocada em Havana no sábado seguinte à sua morte, sexta-feira dia 25 de novembro de 2016. | Alejandro Ernesto - EPA
Fidel Castro foi uma personalidade internacional, que muitos - tanto admiradores como detractores - consideraram com estatura política excessiva para a pequena ilha do Caribe. Entre as estórias que o ligam à grande história do século XX, algumas têm que ver com Portugal.
No dia 1 de Janeiro de 1959, quando Fulgencio Baptista fugiu de Cuba, levando dos cofres do Estado tudo o que pôde, refugiou-se temporariamente em São Domingos e pediu asilo político nos Estados Unidos. Este foi-lhe recusado, porque o presidente Eisenhower não queria aparecer sob os holofotes da opinião pública mundial ligado a um ditador, notoriamente venal, sanguinário e pouco frequnetável, que acabava de ser deposto.
O exílio de Baptista em Portugal
Mas Einsehower tão-pouco queria deixar cair desamparado aquele que fora homem de mão dos EUA e diligenciou que ele fosse acolhido em algum outro país. A escolha acabou por recair sobre Portugal. Salazar aceitou o papel de anfitrião. Baptista veio para Lisboa com alguns dos seus acólitos e hospedou-se no Ritz. Aí o filmou a RTP, tomando contacto com a imprensa portuguesa Reuniu-se-lhe depois a família, mulher e filhos, e finalmente partiram todos juntos para um exílio mais discreto, mas não menos dourado, no Funchal. Também aí a RTP o filmou, a chegar, a passear na cidade, a recolher os filhos à saída da escola.
Quando foram caindo no esquecimento os crimes da ditadura de Baptista e foram esmorecendo as iniciais expectativas norte-americanas de se fazer obedecer pelo regime castrista, o ditador deposto pôde vir instalar-se em Portugal continental. Ficou a viver no Estoril, mas rapidamente investiu a fortuna que trouxera de Cuba em várias praças financeiras.
Investiu também uma parte em negócios imobiliários em Marbella, que visitou algumas vezes. Numa das viagens que fazia à estância balnear do país vizinho, Baptista - conhecido como um garfo de sofreguidão rabelaisiana - fez escala em Elvas, encantou-se com a gastronomia local, comeu demasiado e caíu morto.
Cuba e Portugal: relações diplomáticas sem sobressaltoFidel Castro nunca se mostrou incomodado pela hospitalidade dispensada a Baptista no Portugal de Salazar, nem consta que alguma vez tenha reclamado a devolução de bens que o notório cleptocrata subtraíra dos cofres do Estado.
Uma particularidade da Cuba revolucionária foi, aliás, a de ter mantido sempre relações diplomáticas com o Portugal de Salazar e mesmo com figuras como o líder franquista galego Fraga Iribarne, com quem Fidel viria a encontrar-se bem mais tarde, invocando a sua próprio ascendência galega como traço comum com Fraga.
Certo é que, num momento em que diversas potências ocidentais cortavam relações com Cuba, a ditadura portuguesa mantinha-as. Num momento em que a ditadura portuguesa estava de relações cortadas com a generalidade dos países do Leste europeu, abria uma excepção com Cuba.
"Gosto muito dos portugueses" dizia Fidel Castro
O caso da filha do chefe da PIDE
Fidel cuidava, por outro lado, de evitar detalhes irritantes que pudessem afectar essa relação. Um caso bem conhecido - e exaustivamente dissecado pelos jornalistas José Pedro Castanheira e Valdemar Cruz no livro "A filha rebelde" - diz respeito à filha do chefe da PIDE Fernando Silva Pais. A jovem Ana Silva Pais, casada com um diplomata suíço, acompanhara o marido para uma comissão de serviço em Havana, caindo aí em plena "crise dos mísseis".
Separara-se depois do marido, aderira à revolução cubana e optara por viver em Cuba. Durante algum tempo, viveu com o médico de Fidel, René Vallejos. A mãe viajou ainda a Havana, para tentar convencer a filha a regressar, mas a tentativa foi inútil.
Em Portugal, Salazar receou que a deserção de "Annie" Pais e a sua adesão à revolução cubana fossem usadas com intuitos de propaganda. Acabou por constatar, agradavelmente surpreendido, que a imprensa cubana se abstivera de dizer uma palavra sobre o caso.
A explicação não era certamente um escrúpulo cavalheiresco. Fidel procurava na altura evitar o isolamento internacional e faria o que pudesse para manter relações diplomáticas com os países ainda representados na Havana. Com Portugal, bem lhe bastava o factor de ruptura que constituía o seu apoio às guerrilhas independentistas do MPLA, PAIGC e Frelimo.
Fidel Castro esteve por duas vezes em Portugal:
O caso do capitão Peralta
Esse apoio, por outro lado, foi cada vez mais limitado ao de conselheiros não combatentes ou equipas médicas. O verdadeiro projecto de intervenção armada em África fora o do "Che" Guevara, no Congo. Em Angola, Moçambique e Guiné, durante a guerra de libertação, Fidel procurou concentrar a participação cubana noutras áreas. A intervenção militar viria mais tarde, já depois do 25 de Abril.
Na Guiné, já na última fase da guerra colonial, foi ferido e capturado por tropas portuguesas o capitão cubano Pedro Peralta. Este viria a alegar depois que não se encontrava em missão de combate. Declarou, além disso, que recebeu tratamento médico adequado e que, até ao momento de ser entregue à PIDE, foi tratado com correcção pelas tropas páraquedistas que o capturaram.
Logo após o 25 de Abril, Spínola e o seu círculo mais próximo não quiseram libertar Peralta imediatamente, tal como não quiseram libertar a totalidade dos presos políticos. Correu na altura a versão de que Spínola procurava ganhar tempo enquanto o Departamento de Estado norte-americano negociava nos bastidores uma troca de Peralta por dois agentes da CIA em poder dos cubanos.
Nem essa versão foi provada, nem são conhecidas quaisquer diligências cubanas para obter a libertação de Peralta. Em Portugal, foi o seu advogado, Manuel João da Palma Carlos, quem tomou as iniciativas necessárias para obter a sua libertação. A pressão da opinião pública fez o resto, nomeadamente através de uma manifestação em frente do Hospital Militar da Estrela, onde Peralta estava internado sob prisão.
Libertado, Peralta partiu para Cuba. Já no aeroporto, foi brevemente entrevistado pela RTP, homenageando a forma como o trataram as tropas portuguesas. Em Cuba, o capítulo internacionalista da sua carreira catapultou-o para promoções inesperadas. Mas, segundo o embaixador José Fernandes Fafe, não brilhou nos cargos a que ascendera.
Portugal, "Cuba da Europa": receios infundados dos EUA
Durante a revolução, o embaixador norte-americano Frank Carlucci concebeu a suspeita de que Fidel quisesse exportar para Portugal o modelo dos CDR cubanos (Comités de Defesa da Revolução) e comunicou essa suspeita ao seu chefe, Henry Kissinger. A suspeita data da visita de uma delegação militar portuguesa a Cuba, no final de Abril de 1975.
A delegação, chefiada pelo coronel Varela Gomes, era integrada também por um oficial do Exército e um da Força Aérea (respectivamente Jorge Golias, hoje coronel, e Fernando Seabra, hoje general), e por um marinheiro (recorrentemente designado apenas pelo nome próprio, Bruno, hoje primeiro cabo). Em todos os relatos feitos por essa delegação, nomeadamente perante as câmaras da RTP, não é conhecida qualquer referência aos CDR.
Segundo os relatos da visita, Fidel pediu a Varela Gomes que transmitisse ao presidente da República, o então general Costa Gomes, um aviso de que considerava provável os EUA manobrarem com vista à independência dos Açores. A delegação refere também acordos de cooperação entre ambas as Forças Armadas e, em concreto, as combinações relativas a uma visita a Cuba do chefe do Copcon, o general graduado Otelo Saraiva de Carvalho.
Também durante essa visita, Varela Gomes convidou "Annie" Pais, a filha do chefe da PIDE entretanto preso, a vir para Portugal. O convite foi aceite e "Annie" Pais trabalhou nos meses seguintes como intérprete de franês, castelhano e português na Vª Divisão. Entre as figuras internaicnais que visitaram Portugal a convite desse serviço, contou-se o poeta cubano Nicolas Guillén.
A visita de Otelo viria a ocorrer em Julho, no pico da tensão entre a Vª Divisão e o Grupo dos Nove. Em nome deste, foi feito em 24 de Julho um contacto telefónico com Otelo, que então se encontrava em Havana e daí transmitiu instruções que consistiam em proteger o Grupo dos Nove face às medidas disciplinares que se desenhavam contra os seus membros.
Durante o Verão de 1975, deram-se os primeiros passos para a intervenção cubana em Angola, quando Luanda se encontrava ameaçada por tropas da FNLA a norte e tropas sul-africanas a sul. Nessa altura tratou-se do envio de conselheiros militares que se contavam ainda às dezenas. Em breve passariam a ser enviadas para Angola tropas de combate, em números cada vez mais importantes e para desempenharem um papel que viria a ser decisivo na sobrevivência da jovem República Popular de Angola.
Fidel e o 25 de Novembro
Entretanto, em Portugal, o 25 de Novembro punha fim à revolução. Segundo o embaixador José Fernandes Fafe recorda de conversa que então manteve com Fidel, a principal preocupação deste tinha que ver com o destino que iria ter o PCP, num momento em que a ala mais extremista dos vencedores queria ilegalizá-lo.
Por isso mesmo, tiveram importância para Fidel as declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros Melo Antunes à RTP, logo no dia 26 de Novembro, a garantir que o PCP continuava a ser visto como um partido imprescindível para o regime democrático.
E assim se poderá explicar também um outro episódio, relativo à partida para o exílio de três militares proscritos: Varela Gomes, o capitão Duran Clemente, e o ex-ministro do Trabalho Costa Martins. O advogado e dirigente do MDP/CDE Levy Baptista combinou com o embaixador cubano Francisco Astray a saída dos três militares, com identidade falsa, pela fronteira espanhola, com destino à Embaixada cubana em Madrid, para daí partirem de avião para a Havana.
Depois de combinados todos os detalhes, com grandes precauções conspirativas, Levy Baptista foi surpreendido pela comunicação de Astray de que iria pôr Melo Antunes ao corrente da operação. Mas, apesar de surpreendente, a comunicação confirmava a preocupação de Fidel com o estatuto legal do PCP e com o papel de Melo Antunes, na altura favorável a manter esse estatuto.
http://www.rtp.pt/noticias/mundo/fidel-e-portugal-algumas-estorias-de-uma-relacao-nunca-quebrada_n964913
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