Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


13-04-2016

Luanda 1962 (ou 3?) Cervejas e baratas


Faz muito tempo e pode ser que a memória apresente algumas falhas, mas o que vamos contar, em poucas linhas, retrata como era o tempo em que quase se via o Tarzan a passear nas matas dos arredores daquela cidade que nos ficou “cá dentro”!

Vai já lá para o tempo do Kaparandanda! Quando eu ainda trabalhava da Cuca!!!

 

Estes copos da “Cuca” têm uma história curiosa. Qualquer dia eu conto.

 

Volta e meia, raras vezes, felizmente, aparecia uma reclamação de tal forma violenta que parecia que o mundo vinha abaixo; Alguém tinha encontrado uma garrafa, fechada como de fábrica, com uma enorme baratona dentro.

“Aqui d’El-Rei - o pessoal da Cuca são uns porcos, nem as garrafas lavam, isto vai render um monte de dinheiro que é para eles aprenderem, etc.”

Lá ia o pessoal do serviço de vendas falar com o cliente, quase sempre muito renitente em aceitar que aquilo era obra de terceiros, porque a garrafa parecia, efetivamente, inviolada.

Como é de imaginar a Companhia não pagava um cêntimo, e o assunto acabava por se resolver no papo, nuns copos, e pronto.

A verdade é que para todo o pessoal da Cuca, serviços de produção e comerciais, aquela baratas sempre foram um mistério! Garrafas lavadas em máquinas, com água a 90° graus, soda cáustica, depois detergente, etc., as garrafas saiam da máquina de lavar mais limpas do que quando novas, e não havia a menor condição de uma barata, um prego ou que fosse permanecer lá dentro.

Antes do enchimento passavam pelo menos por duas funcionárias que viam até mosquito na outra banda, e o mesmo se passava após cheias e capsuladas.

Baratas? Um mistério que ficou por desvendar! Sabotagem? Azar? Chi lo sa?

Um dia, num miserável comércio de beira de estrada, onde depois todos os brancos sumiram, dia quente, para variar, de regresso lá dos interiores, parei para refrescar a goela, saber como estava o abastecimento e... beber uma cervejinha. Lá dentro um outro cliente berrava que lhe tinham servido uma cerveja com a tal baratinha dentro. Aliás baratona. Imensa.

Não me dei a conhecer como funcionário da Cuca, mas tentei explicar que conhecia a fábrica e que tal situação era impossível de acontecer. O cliente deve ter-me mandado para algum lugar pouco conveniente, e quem estava a servir ao balcão era um garoto dos seus 12 ou 13 anos, que logo quis meter mais gasolina no fogo: “Eu sei que “eles” lá não lavam as garrafas. Contou-me um cliente que aqui passou!”

Já a só, identifiquei-me e convidei-o a visitar a fábrica, o que fez brilhar os seus olhos de jovem ignorante do mato.

Cuca faria 10 anos de atividade (?) e decidiu convidar todos os seus clientes comerciantes, da cidade de Luanda e arredores, para uma visita à fábrica seguida dum... lanchezinho!

Tudo muito bem organizado, convites bonitos, impressos, encomenda a pasteleiros, confeiteiros e ao cozinheiro da companhia, uma imensa quantidade de pasteis de bacalhau, croquetes, pasteis de nata e outros doces, sanduiches diversos, camarão “tira-gosto” e mais um monte de outros petiscos, incluindo os indispensáveis tremoços, e uma dobradinha que se ia petiscando com um palito, além de, o que seria de esperar, cerveja a copo – chope – a correr solta!

Aí pelas 3 ou 4 da tarde os convidados, incluindo o garoto “convidado especial”, foram chegando, a maioria gente humilde, relativamente poucos africanos, todos envergando a fatiota mais chique que puderam encontrar, apresentavam o convite na portaria onde eram recepcionados pelo Secretário da Administração, o meu querido amigo João Matos Chaves para, como bom dono de casa, ir cumprimentando todos os que apareciam.

Os convidados eram agrupados, talvez uma dúzia de cada vez e um funcionário dos serviços comerciais acompanhava-os na visita à fábrica, coisa que, praticamente todos, não tinha ideia do que seria! Faziam perguntas. Extasiavam-se ao ver tão “magníficas” instalações de onde saía aquela bebidinha gostosa, ‘a rainha das cervejas” de Angola.

Entre os convidados surgiu o porteiro da Companhia, todo “bem posto”, convite na mão.

-“Tu aqui”? – “Sim sr. Dr. Eu tenho um pequeno comércio, a minha mulher ficou a tomar conta da loja e eu vim aproveitar para conhecer a fábrica. Trabalho aqui há cinco anos e nunca passei desta portaria”!

Acabada a visita à fábrica dirigiam-se para o galpão onde normalmente ficavam estacionados os caminhões de entrega, nessa tarde ocupado com inúmeras mesas cheias de apetitosas iguarias.

A primeira coisa que viam era um funcionário a oferecer-lhes um copo... bem geladinha.

Soltos em frente às mesas com os petiscos, era ver a velocidade como se saciavam e com que rapidez iam virando os copos, garganta abaixo!

Chegaram umas quantas dezenas de visitantes, que o tempo passado não permite já calcular quantos teriam sido e, por muito que o pessoal da Companhia quisesse dialogar com eles, as bocas entupidas de bacalhau e bolos não lhes permitia grandes conversas.

O dia chegava ao fim, e ninguém arredava pé. Festa daquela, “boca livre” com cerveja na própria fábrica segurava a turma.

O sol posto, as luzes da “garagem” acesas, uma boa porcentagem dos convivas já mal se aguentava nas canelas, e ninguém atinava com a melhor maneira de os mandar embora.

Surgiu por fim uma ideia luminosa: apagar as luzes! Não todas mas as suficientes para lhes mostrar que a festa chegara ao fim.

Foi um Deus nos acuda. O povo decidiu que em cima das mesas não devia ficar nada e vá de encher os bolsos das calças, do casaco e das camisas, com pasteis, croquetes e até pasteis de nata. Houve alguns que cerimoniosamente vieram perguntar se não nos importávamos que levassem “uns bolinhos para a esposa e crianças”! “Podem levar tudo. Até facilita a limpeza que se seguirá. ”

E foi o assalto final! Metia nojo ver aqueles selvagens a encherem os bolsos com doces, salgados e ainda a quererem beber o último copo de cerveja.

Alguns abriam a camisa e, em bom português enchiam o bandulho “externo”!

À medida que se iam despedindo, bolsos e camisas cheias, pensámos (eu estava lá!) que a melhor maneira de retribuir a simpática visita deles eram abraçá-los com “viva” emoção, esmagando o que pudéssemos nos seus bolsos e barrigas! E lá foi aquele bando de hienas, semi bêbedos, cheios de nódoas no corpo e na roupa o que não os perturbou minimamente!

Não deixaram uma só migalha para mais alguém aproveitar, o que facilitou imenso o serviço de limpeza!

Depois disto, o pessoal da Companhia, muito riu e muito se desgostou com a bestialidade de alguns, felizmente a minoria.

Reclamações de baratas... se não sumiram todas, ficaram reduzidas a muito vagas exceções.

Mas, é preciso confessar: eram muito mais simpáticas aquelas baratinhas do que a zika, o dengue, a chicungunha, a madama vaca, o sapo ladrão, e outros bichos horrendos que infestam esta região, além da tristíssima microcefalia. Sem esquecer o total desgoverno, a desorganização na saúde, economia, educação, transportes... já chega, né?

Quem não tem saudades de Luanda do tempo do Kaparandanda?

 

 

08/04/2016

Postado por Francisco Gomes de Amorim às 12:33 

 

http://www.fgamorim.blogspot.pt/2016/04/luanda-1962-ou3-cervejas-e-baratas.html#links