Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


06-03-2016

Ficar Chato - Miguel Esteves Cardoso


 

                                                   Ser chato é dizer uma coisa só porque se sabe que existe. 

Ter consciência de se estar a ficar chato é cada vez mais difícil quanto mais chatos nos tornamos à medida que envelhecemos ou, para aqueles que ainda acham que são não só novos como cada vez mais novos, à medida que repetidamente, ano após ano, não rejuvenescem.

Rejuvenescer: que verbo tão estranho. É como o substantivo zombi que só recentemente adquiriu um e final. Ninguém rejuvenesce. É a maneira do mundo. Cada minuto que cá passamos nesta vida inesperadamente curta paga-se a cem mil vezes o preço do ouro que nem sequer se aproxima do valor verdadeiro de viver.

Ser chato é dizer uma coisa só porque se sabe que existe. Ser chato é partilhar. Ser chato é ensinar o que ninguém quer aprender.

Ser chato é ser velho e pensar-se que ainda prevalecem os ideais que veneramos quando somos muito novos e ignorantes: antes dos 13 ou 14 anos.

Todos os velhos são chatos. No caso de um casal a coisa mais importante é a confiança. Depois de 20 anos certinhos de constantes amor, paixão e companhia a Maria João, pela primeira vez nas nossas vidas, acreditou que uma coisa chata que eu lhe ia dizer não valia a pena ouvir.

Nas duas décadas até aqui desconfiávamos e dizíamos que, por muito chata que fosse a coisa que a pessoa amada iria dizer, queríamos satifazer a nossa curiosidade.

Nunca mais. Recusar as chatices auto-censuradas da pessoa amada que está cada vez mais chata e consciente da chatice que produz é defender não só quem se ama como o próprio amor.

*É um críticoescritor e jornalista português.

http://www.publico.pt/sociedade/noticia/ficar-chato-1725313