Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


24-02-2016

A voz maviosa e o genuflexório


Podem acusar o Orçamento do Estado (OE) para 2016 de fazer figas para que tudo corra bem, como se revelasse uma fé inquebrantável em Deus (sendo que o Senhor nem voltou à terra, nem consta que frequente os mercados). Mas há algo que este OE faz e faz bem: deixou de fazer mal às pessoas por antecipação. Incorpora fé, sim, mas também opções orçamentais que visam a progressiva reposição de direitos que, durante anos, foram retirados enquanto alguns comemoravam com champanhe: cada vez que a troika simulava a saída, ia-se cravando mais fundo nos bolsos dos mais desfavorecidos, pela porta dos fundos das opções de Passos e Portas. Fruto dos acordos parlamentares com o BE e o PCP, a histórica aprovação deste plano orçamental é o primeiro capítulo de uma não capitulação ou rendição total a Bruxelas, saindo do pensamento da inevitabilidade do empobrecimento dos mesmos, dos cortes de salários e das pensões, cumprindo a Constituição. Pela primeira vez em muitos anos, a sensação de nos termos levantado do banquinho com encosto sobre o qual as pessoas se ajoelham para rezar. Esse mesmo, o genuflexório.

O "genuflexório" entra no debate político pela voz de Carlos César. O líder parlamentar do PS assegura que António Costa o terá encontrado, semiusado em Bruxelas, por Passos Coelho. A imagem é clara e traça, com avantajado léxico clerical, a dimensão da bondade no ataque político parlamentar. Imaginar Passos Coelho de joelhos na Europa não é uma profissão de fé, é de uma profissão: político. E Carlos César nem sequer é uma aparição de hoje. Parlamento. "Sente-se à vontade, César", dirá António Costa. "Mais à vontade do que nunca, sr. primeiro-ministro", responderia o deputado que quase foi candidato à sucessão no partido do actual primeiro-ministro. Costas guardadas e, no entretanto, a Costa o que seria de César.

A melhor política também se faz, para além do generoso léxico, com o que se seduz dizer. A "voz maviosa" que António Costa atribuiu a Passos Coelho gerou no ex-primeiro-ministro um autêntico nó cego que o levou a abandonar o hemiciclo. Estaria Costa a insinuar que a sua voz era doce e agradável? Suave e terna? Ou estaria Costa a simular o som de uma palavra que conhece? Passos Coelho preferiu enfrentar o conhecido e abalou perante o elogio da fonética, enquanto a bancada do PSD estremece pela desonra, sem perceber o estilo. Nessa tarde, António Costa reconhecia, perante o deputado do PAN, o "papel essencial" dos animais na "ruptura com a solidão". Todos percebemos que Passos saiu sozinho do hemiciclo. Mas que não terá sido por solidão ou de mote próprio que vimos Paulo Rangel, líder do PSD no Parlamento Europeu, a defender o chumbo do Orçamento português pela Comissão Europeia. Nesse mesmo, no genuflexório.                      http://www.jn.pt/opiniao/default.aspx?content_id=5044675