27-12-2015O telefone de outros tempos por Francisco Seixas da Costa
Já por aqui contei um dia o telefonema que, no início anos 60 do século passado, fizémos ao administrador apostólico de Vila Real, monsenhor Libânio, imitando a voz do bispo da Diocese, dom António Valente da Fonseca, que se encontrava em trabalho em Roma. A conversa começou por versar sobre os problemas da Diocese para, a certa altura, abordar o estado de saúde de umas muito conhecidas prostitutas locais, o que colocou o monsenhor numa imensa aflição, pensando que o bispo se "tinha passado", levando-o a interromper a chamada.
De uma outra vez, relatei neste blogue a aventura que foi convidar telefonicamente o responsável por um torneio de ping-pong (diz-se ténis de mesa agora, não é?) a repetir os resultados de todos e cada um dos jogos, convencendo-o de que, no dia seguinte, essa "reportagem" sairia em duas páginas do "Norte Desportivo". Ao alvoroço com que vencedores e derrotados, desejosos de ver o seu nome em letra de forma, esgotaram em segundos os exemplares chegados a Vila Real, seguiu-se uma fúria contra os desconhecidos "engraçadinhos" que tinham sido autores da "partida", felizmente não identificados.
A modorra de uma cidade de província, onde muito pouco havia para fazer, em especial em tempos de férias, levava à ousadia para este tipo de brincadeiras, protegidas, à época, pela garantida impossibilidade técnica de se detetar a origem das chamadas.
Ontem, numa volta pela cidade com amigos, recordámos mais três dessas "partidas" inocentes, em que interveio um número considerável de amigos, até porque o respetivo "efeito" só era conseguido pela repetição dos atos.
A primeira teve como vítima o proprietário de uma tasca no "circuito", o senhor Coelho. O Coelho era um homem de má catadura, proverbial mau feitio, sempre com um ar zangado atrás do balcão. A partir de certa altura, e durante várias semanas, o Coelho recebia chamadas que começavam de forma diferente mas acabavam sempre da mesma maneira, como por exemplo: "Está lá? É o senhor Coelho?" O homem respondia que sim e, do lado de cá da linha, nós avançávamos com a mesma frase: "Pum! Pum! Ó Coelho, matei-te!" Antes de desligarmos, o Coelho zurzia-nos com um arsenal muito criativo de asneiradas, de onde não saíam incólumes as nossas progenitoras. Foram largas dezenas de chamadas. Às vezes, já não era o próprio Coelho que atendia, mas nós tínhamos artes de obrigar a que ele próprio viesse ao telefone, invocando o nome forjado de um fornecedor ou coisa parecida. Um dia, alguns de nós corremos mesmo o risco de estar na tasca, a comer uma sanduíche, enquanto outro amigo executava a "operação". E não nos "desmanchámos"...
A segunda "intervenção", ao que apurámos, colocou uma família quase de cabeça perdida. Era uma simples chamada para um determinado número, apurado na lista da cidade. Invariavelmente, a nossa fala era a seguinte: "É de casa do senhor Zuzarte?" Respondiam sempre positivamente, quase sempre o próprio, ao que nós acrescentávamos: "O senhor Zuzarte não tem vergonha de ser o último nome da lista telefónica?" E acrescentávamos coisas como: "Deve ser muito triste, não é?" ou "Nunca pensou mudar de nome?" Da surpresa inicial, o Zuzarte começou a "passar-se dos carretos", respondendo com um chorrilho de imprecações furibundas. Às vezes, era a esposa do senhor Zuzarte que vinha à linha e nós adaptávamos a frases criativamente piedosas. Não vou revelar, contudo, a fraseologia adotada quando a família Zuzarte passou a encarregar a "criada" de atender as chamadas...
Conto agora a última das "partidas" - há outras que nunca "prescreverão", pelo que são irreproduzíveis... - que então fazíamos. Havia, na avenida Carvalho Araújo, uma importante loja de eletrodomésticos chamada "Casa Patinhas". Ora, à época, de um popular programa radiofónico diário dos "Parodiantes de Lisboa", faziam parte uns "sketches" muito populares, uma conversa entre um detetive, chamado "Patilhas", e o seu colaborador, o "Ventoínha". O senhor Patinhas passou a receber, aí uma vez por dia, durante meses, uma chamada telefónica muito simples: pedia-se-lhe para chamar ao telefone o "Ventoínha". De início, o senhor Patinhas foi dizendo que por ali não havia nenhum Ventoínha. Rapidamente percebeu a marosca e passou a ter reações furiosas. Mudámos então de tática: passou a ser "o próprio Ventoínha" a telefonar, dizendo querer falar com o Patinhas. O homem (o facto dele se não chamar Patinhas e não Patilhas era já despiciendo) dava berros que se chegavam a ouvir num banco da avenida que havia perto da porta da loja, onde nos íamos sentar para gozar a cena. Um dia chegámos a pedir a uma amiga para telefonar como se fosse mulher do Ventoínha, perguntando por ele. Arrancámos-lhe o telefone da mão antes do pobre Patinhas a mimosear com qualificativos que um "blogue de famílias" como este não pode, naturalmente, acolher.
Era assim nesse tempo, nessa Vila Real de então, para quem tinha 14 ou 15 anos e muito pouco para fazer nos tempos livres. Não devia ser muito diferente noutras cidades de província portuguesas. Publicado por Francisco Seixas da Costa à(s) 01:38
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