Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


10-09-2015

A história mostra que há possibilidades de escolha; o futuro não está traçado - entrevistado: António M Hespanha


FICHA TÉCNICA

  • Naturalidade: Coimbra, Portugal
  • Currículo: Doutor em História e Política Institucional Europeia; Professor visitante em diversas instituições, em países como Itália, Noruega, Suíça, Brasil, México, Canadá, China e Índia. Pesquisador honorário do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; Doutor Honoris causa pela UFPR
  • Acadêmico que admira: Zygmunt Bauman
  • O que está lendo: The History Manifesto, de Jo Guldi e David Armitage, disponível gratuitamente em: http://bitly.com/1OyXybu.
  • Nas horas vagas: gosta de colecionar objetos antigos; de desenhar, principalmente paisagens; de assistir televisão; e ler livros de Patricia Highsmith

O jovem António Manuel Hespanha gostava de desenhar e tinha planos de ser arquiteto. Mas seu pai, que era notário, insistia que ele estudasse direito. Hespanha seguiu a vontade do pai, mas não se fechou no mundo jurídico. Em sua carreira, procurou sempre analisar a relação dos tópicos do direito com a vida prática e se tornou historiador. Ele conta que viveu em pequenas aldeias e vilas em Portugal e por isso é bastante sensível a questões do mundo pequeno que não se referem ao que ocorre nos grandes tribunais ou ao que é escrito pelos grandes juristas. Seu olhar se volta muito àquilo que ocorre nas varas de interior ou mesmo nas relações do direito que se constroem no dia a dia da sociedade. Hoje, o catedrático da Universidade de Nova Lisboa é uma das principais referência mundiais em História do Direito.

Mesmo com todo reconhecimento acadêmico, sua conversa é simples e acessível, tanto para falar sobre direito, quanto para indicar os seriados que mais gostou de assistir. Hespanha, segundo ele mesmo conta em um vídeo publicado na internet, foi descrito por um aluno como uma pessoa que qualquer um adoraria ter como avô ou familiar, já que é muito fácil interagir com ele e até brincar. Por outro lado, o aluno adverte que ninguém deve se enganar, pois o professor sabe demais e exige o mesmo nível de seus alunos em provas muito difíceis, além de ter muitas ideias extravagantes. No vídeo, que é uma apresentação de uma disciplina, Hespanha traz seu ponto de vista e diz que tem certo conhecimento acumulado devido à idade e que apresenta ideias extravagantes aos alunos sim, pois “nada é mais excitante e radical do que ser exposto a coisas novas”.

O professor esteve em Curitiba para participar do VIII Congresso Brasileiro de História do Direito, realizado na semana passada pelo Instituto Brasileiro de História do Direito e pela Faculdade de Direito da UFPR. Hespanha conversou com o Justiça & Direito e falou sobre a importância de o historiador desmitificar o direito contemporâneo e de se ter o olhar para os dados de massa, que mostram como o direito é realmente feito.

O senhor fala que o historiador do direito desmistifica o direito contemporâneo. Poderia explicar essa sua interpretação?

A maior parte dos meus colegas juristas admitem, um pouco contrariados, que a História do Direito tem alguma importância, mas por uma razão com qual eu não concordo. Eles dizem “o direito do presente vem do passado e tem muitos restos do passado, palavras e conceitos que se formaram no passado. Então, para saber aplicar o direito, nós devemos interpretar essas palavras e conceitos”. Não creio que isso seja verdade.

O direito, na prática, não são grandes juristas, são juizinhos daqui e de acolá fazendo suas sentenças

Por que o senhor discorda?

A cada geração e momento, a história vai refazendo o conteúdo dos conceitos, das palavras. Então, não creio que por isso a História do Direito é importante. Ao meu ver, a História, e História do Direito, especificamente, é importante porque ela responde a um problema político central no presente. Hoje, os políticos e alguns profetas do futuro –economistas e mais alguns que acham que sabem ler leis na evolução humana – representam o futuro como uma inevitabilidade, portanto, sem escolha. Isso é muito grave, pois, quando não há escolha, não existem opções políticas. Se não há escolha, não vale a pena haver a democracia. Para que vamos votar e fazer outras escolhas se o futuro já está traçado? Eu creio que não é assim. Olhando para o passado, nós vemos que sempre houve escolhas e os homens do passado eram como nós.

E como a História do Direito contribui para que a leitura das perspectivas não seja tão limitada?

A História do Direito ajuda a recuperar o sentido das alternativas e da existência delas. Conhecemos épocas do passado em que o direito principalmente a lei, era outra coisa. Hoje, essa questão volta a ser posta, se o direito deve ser feito no parlamento ou em outras esferas da regulação, se devem haver formas autônomas de regulação no comércio internacional. Devemos estar conscientes de que o futuro depende de uma escolha nossa. A história mostra que já houve outras maneiras de fazer e organizar e que as formas que existem são produtos da escolha.

Não basta conservar os livros, é preciso conservar os [documentos] da prática.

Desmistificar seria deixar de trabalhar com a ideia de que “é assim porque só pode ser assim”?

Exatamente, que é o discurso que hoje se tem, o discurso da inevitabilidade. A Europa está numa crise e há países que reagiram, cada um a sua maneira. A Itália está reagindo de uma maneira, Portugal de outra, a Grécia de outra. Mas dizem-nos que há uma saída única que, por acaso, coincide com o modelo econômico alemão neoliberal, de desmontagem dos serviços sociais. Dizem que isso é inevitável, tem que se acabar com as pensões porque não há dinheiro. Mas há dinheiro. O problema está em dizer se vamos pôr em pensão ou vamos pôr em armamento? Vamos pôr em pensões ou vamos salvar bancos que faliram? É uma questão de opção, mas há opções. A História volta a trazer para o primeiro plano a ideia de escolha e isso é trazer para primeiro plano a ideia de democracia.

Em outra entrevista à Gazeta do Povo, o senhor falou sobre a necessidade de o historiador se distanciar um pouco do presente. Como é possível fazer isso?

Nós tentamos, é uma das regras da arte, digamos assim, do historiador do direito tentar reconstituir o passado com o que nós temos, por isso as diferenças são muito profundas. Por trás daquelas construções familiares patriarcais, por exemplo, está um estudo sobre a natureza do feminino e do masculino. Sairmos do nosso mundo para tentar captar este mundo que é construído sobre uma geometria mental completamente diferente é extremamente difícil e resta saber se realmente nós conseguimos. Há coisas que são muito profundas, a própria linguagem traz consigo imagens determinadas. É um esforço, não totalmente atingido, para tentar compreender o passado dentro da perspectiva do passado e não na do presente. Por outro lado, temos que nos distanciar do presente tentando nos aproximar do passado, mas também não podemos ficar presos ao passado.

O senhor é considerado o maior estudioso na história do direito. Quais são as principais vertentes dessa área hoje?

Sabe, isso de ser bem aceito ou mal aceito tem muito de sorte. Mas talvez o êxito que minha obra tem tido se deva ao fato de eu ter me distanciado por um lado daquilo que o poder é hoje, sem ler o século 17 como uma antecipação do que seria hoje. Atualmente, o poder do Estado é muito forte. Não li o século 17 como se o poder estivesse na mão de uma pessoa, o rei. Se estudarmos um pouco, veremos que não é bem assim, e está muito longe de ser assim. Minha tese sobre este período foi exatamente sobre isso, eu tentei ler vários documentos sem me deixar levar pela pré-compreensão de como seria. Isso deu em um livro muito diferente, que produziu uma imagem muito diferente do que era costume dizer-se, toda gente falava na centralização, com a monarquia francesa, aqueles grandes reis, Luiz XV etc. E meu livro não tem isso, trata da grande importância dos poderes periféricos, dos conselhos nas pequeninas terras. Esse livro deu uma grande polêmica, nem toda gente gostou. Para muitos pareceu um livro errado, que estava a afastar-se de coisas que estavam estabelecidas.

E como isso passou a ser aceito?

O tempo foi passando e realmente hoje essa visão é bastante pacífica em Portugal, Brasil, Espanha, Itália, no sul da Europa e da América Latina. Esse é o exemplo de uma coisa que fiz, escrevi, tive êxito e resultou desta tal ideia de ver o passado pelo que ele tem de diferente, mesmo em suas estruturas mais básicas. Depois, fiz outras coisas do mesmo gênero, tenho um pequeno artigo de 1983 sobre o direito dos rústicos, que eram os camponeses. A ideia comum era que o direito não era dos camponeses, eles eram objetos do direito criado pelas altas esferas pelos juristas. Este pequeno artigo, no fundo, defende a tese de que há um direito autônomo, das pequenas comunidades, um direito próprio, que não depende do poder central. Isso foi numa altura muito propícia, porque sociólogos e antropólogos estavam a estudar o direito das favelas no Brasil e dos bairros de lata no México ou mesmo das comunidades imigrantes na Europa. Todos apontavam aquilo como um direito. Na época identificavam a favela como um não direito. Boaventura Sousa Santos estudou o direito de uma favela do Rio de Janeiro e mostrou que ali há um direito. Essas ideias de que há direito na periferia eram inovadoras àquela altura.

E como o senhor passou a se interessar pela história das comunidades aqui do Brasil?

Eu entrei na história do Brasil porque, em certo momento da minha vida, no fim dos anos 1990, presidi a comissão de comemoração dos descobrimentos portugueses, durante três anos. Nessa época, comecei a me interessar pelas realidades brasileiras, comecei a realçar a importância dos poderes locais. Tentei aplicar as perspectivas da minhas tese, a importância da colônia com sua vitalidade própria. Dentro da colônia, se comunicavam com o vice-rei de ano a ano. Há um provérbio: “o vice-rei vai e vem, padre paulista sempre tem”. O padre daquela comunidade está sempre, se estamos a falar da entidade que regula, é o padre. Uma das características culturais do Brasil é a contínua valorização desse direito periférico.

Durante o Congresso de História do Direito deste ano, que abordagens o senhor destacaria?

Ouvimos uma mesa constituída por historiadores que trabalham sobre escravidão, com duas historiadoras brasileiras, duas americanas, um juiz e um procurador. Foi muito interessante porque mostra como a visão histórica pode ajudar a resolver questões atuais. Ou seja, os historiadores têm conhecimento que pode ser útil para interpretar as questões atuais relacionadas ao trabalho forçado. De fato, houve um entrosamento muito grande entre as exposições dos historiadores e as dos juristas atuais que trabalham o assunto. E também há questões mais técnicas, como sobre a maneira de fazer história.

Há um consenso sobre a maneira de fazer História do Direito?

Há consensos em algumas coisas, em outras não. Por exemplo, toda gente entende que História do Direito não pode ser história da lei. Há também certo consenso de que a História do Direito não é a história dos grandes juristas e do seu trabalho. Pois o direito, na prática, não são os grandes juristas, mas são juizinhos daqui, os juizinhos de acolá fazendo suas sentenças. Eu, por exemplo, irei encerrar o congresso e vou realçar uma coisa que não tem sido muito comum entre os historiadores do direito que é fazer uma história baseada em dados de massa. Isto é, por exemplo, fazer uma história do direito baseada em documentação notarial, há milhares, se não milhões de escrituras notariais. O direito de compra e venda onde está? Em um tratado sobre compra e venda? Não, está nas compras e vendas feitas aos milhares a cada dia. Portanto, se quer saber o que é o direito ou as sentenças judiciais, tens que ir e ver. Mas isso não é uma prática muito corrente porque os arquivos nem sempre estão bem conservados – e isso no fundo também chama a atenção para conservar as memórias do direito. Não basta conservar os livros, é preciso conservar os [documentos] da prática. Por outro lado, os juristas – e os historiadores do direito na maior parte são juristas – não gostam muito de lidar com fatos. A realidade, para eles, não é direito. O direito é uma coisa que está fora, uma norma que se criou para se impor à realidade. No teatro do mundo, a realidade não é um ator. Os atores são as normas, que se impõem à realidade. É preciso ter atenção aos dados em massa, porque lá está o direito vivido, e nesse sentido, é preciso inverter um pouco a maneira de fazer história.

Coloborou: Lucas Prestes

 

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