Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


18-08-2015

António Borges Coelho: O reino de Castela era a Alemanha de hoje


 

por João Céu e SilvaOntemComentar

António Borges Coelho: "O reino de Castela era a Alemanha de hoje"

Fotografia © Orlando Almeida / Global Imagens

A definição mais sucinta sobre António Borges Coelho pode ser a de que nasceu em Murça em 1928 e é historiador. Mas quem não ficar satisfeito com esse resumo insignificante pode saber que também é poeta e dramaturgo. Que publicou bastantes volumes sobre História medieval e o início da Idade Moderna.

E que em resposta à quase inexistência de estudos sobre ocupação muçulmana da Península Ibérica se dedicou bastante ao tema. Ainda que a sua investigação sobre a Inquisição portuguesa alterou para sempre o modo como se via a instituição.

Há quem só o conheça desde que decidiu voltar à vida académica em idade avançada, aos 50 anos, na Faculdade de Letras de Lisboa. Há também quem não se esqueça da sua vida política e dos tempos de clandestino e de preso político. Contribuiu então para mudar o olhar sobre a Revolução de 1383 e, preocupado com a questão filosófica, não ignorou o estudo profundo de Leibniz e de Espinosa.

Foi professor catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa, diretor do Centro de História da Universidade de Lisboa, diretor da Revista de História da Sociedade e da Cultura, entre vários cargos, depois de ter exercido jornalismo em A Capital, Diário de Lisboa e Diário Popular, e de ter colaborado nas revistas Vértice e Seara Nova. O seu mais recente trabalho de investigação trata do período em que Portugal perde a independência, 1580 a 1640, em que faz uma reconstituição histórica que surpreende pela riqueza de pormenores e clareza de explicação. Com este volume intitulado Os Filipes, além da descrição exaustiva da oposição à integração nacional na dominação de Castela, permite observar-se o paralelo histórico entre uma época passada e a atualidade, com a diminuição do peso do Estado nacional perante a União Europeia.

Preferia ter sido um cronista como Fernão Lopes ou um historiador na atualidade?

Digamos que o historiador da atualidade tem de ser também o cronista Fernão Lopes. Que não é apenas um cronista pois mete-se por caminhos que são os que hoje exploramos. Vai para o quotidiano; não exclui nenhum grupo social, o que por vezes mesmo na historiografia contemporânea não se faz, deixando setores da população num gueto. O foco está sempre nas elites, como se fossem tudo no processo e no movimento histórico.

E no Fernão Lopes não faltava a arraia-miúda!

A arraia-miúda tem um papel fundamental, tal como Lisboa tem também um papel fundamental. Aliás, Lisboa, ao longo da história portuguesa, teve um papel determinante até ao século XX e só hoje está a perder parte desse papel. Por ter diminuído população e dinamismo, Lisboa deixou de ser o centro clássico.

Está a perder para outras cidades do país ou para a Europa?

Está a perder para a Europa, isso é nítido. Também começaram a surgir, embora ainda muito limitadamente, outros espaços em Portugal nos últimos anos. Braga, por exemplo, embora fosse a sede de um arcebispado que queria disputar o poder a Toledo, era um povoado muito fraco do ponto de vista populacional.

No seu mais recente ensaio de História, Os Filipes, é muito crítico em relação aos "portugueses que conheciam bem melhor os portos orientais e atlânticos do que as cidades da Europa", e dá como exemplo Fernão Mendes Pinto e Luís de Camões, que "cruzaram os três oceanos mas nunca foram a nenhuma cidade europeia". Porquê?

E continuo a achar que é assim. Isto é, havia os grandes circuitos comerciais, a navegação de Lisboa para o Norte da Europa, para a Itália e Mediterrâneo. Ou seja, o jovem que inicia agora a sua vida para onde é que vai? Para a Europa? Antes ia para o mundo todo. Para o Brasil, se era ambicioso de terra, porque era o mundo novo em construção.

Acha que hoje a construção do mundo já parou?

Não creio, apesar de a tecnologia - que é fantástica - ter travado brutalmente o progresso social. Porque os homens começam a ser dispensáveis e a ditadura do capital financeiro impôs-se, facto que agora ficou bem visível nestes problemas em torno da Grécia. Quando o Fundo Monetário Internacional vai participar nas reuniões em que se vai castigar a Grécia e, institucionalmente, não está integrado na União Europeia nem foi eleito por ninguém, absolutamente por ninguém, mostra que os governos das nações estão a ser a postos de lado. Ou melhor, estão a ser dirigidos por quem abdicou efetivamente da independência política.

Este seu livro relata episódios que fazem lembrar muito o período que vivemos. Portugal perdia a independência para Espanha e hoje perde para a União Europeia. Pode comparar-se?

De certeza, mesmo que por norma vejamos a perda da independência para Espanha, mas era para Castela. Digamos que o reino de Castela era a Alemanha de hoje, mesmo que esta seja é uma comparação grosseira. Era a nacionalidade dominante e abarcava não só os territórios e as comunidades da Península Ibérica mas também territórios europeus, e com o caso português também o império ultramarino. Nesse sentido, o projeto de Castela e de algumas elites era o estabelecimento de uma monarquia universal católica.

Para lá da Península Ibérica?

Exatamente, em que era preciso reduzir a influência dos países da Reforma, os que hoje são a Europa do Norte: os políticos alemães luteranos, a Dinamarca, a Suécia e a Inglaterra. Esse projeto foi derrotado na guerra dos Trinta Anos.

Poderia ter sido vitorioso?

Por várias vezes. Essa derrota facilitou a explosão do mundo ibérico nas tentativas de revolta da Andaluzia e da Catalunha, de Portugal, de Nápoles e da Sicília. Tudo isto foi como que uma explosão da grande construção que vinha de trás.

Portugal perde a independência em 1580 pela "estupidez" de D. Sebastião em Alcácer-Quibir...

... A pergunta é: Alcácer-Quibir resultou de quê? Da ideia de que o império que a Índia era estava muito distante e que talvez fosse melhor chegar-se ao que estava perto. Havia até em Os Lusíadas claramente o apelo para dilatar Portugal no Norte de África, avançar e arranjar terra. Um apelo que vinha do século XV e da conquista de Ceuta. É evidente que D. Sebastião era um homem complexo e tinha os seus partidários. É também verdade que a batalha de Alcácer-Quibir foi muito mal conduzida e com grande oposição interna. Do ponto de vista institucional, Filipe II era um herdeiro natural de Portugal. O problema é que Portugal já não era passível de ser uma herança pacífica, tinha a sua personalidade e por isso Filipe esteve meio ano sem conseguir tomar posse da herança e só o conseguiu quando entrou com um exército de 20 mil homens. Avançou direito a Lisboa, que era a cidade decisiva. Tomada Lisboa, estava arrumada a questão.

Alcácer-Quibir faz-nos perder a independência por 60 anos e o que surge é um sebastianismo messiânico em vez de os portugueses aprenderem a defender-se? Passa-se o mesmo agora contra esta Europa?

Quando Filipe herda o trono existe o Pacto de Tomar, que diz que quem governa Portugal são os portugueses. E manteve-se, mesmo que existisse uma cabeça estranha porque o reino continua a funcionar com os seus organismos. Quanto ao sebastianismo, ele representa, para lá de uma invasão do não racionalismo por parte de algumas das nossas elites, uma espécie de propaganda antifilipina. Repare-se que os sebastiões ao longo da época filipina foram mato e um deles, o chamado rei da Ericeira, até teve um exército. O último Sebastião é um aventureiro da Calábria, que vem numa delegação de fidalgos poderosos emigrados a Lisboa para se conferir os seus sinais com os de D. Sebastião. Na verdade, há toda uma mitologia, mas o que é verdade é que ela foi favorecida por todos.

O próprio padre António Vieira ajudou essa criação messiânica?

Que é uma pessoa inteligente e realista.

Torna-se irracional perante a situação?

Até ajuda a desenterrar as Trovas do Bandarra. Aquilo que fazia era propaganda e chega-se ao ponto de o padre António Vieira, depois da morte de D. João IV, afirmar que ele é o D. Sebastião que há de ressuscitar.

Que Fernando Pessoa ainda vem alimentar mais tarde. Ainda há sebastianistas?

Há sempre uma zona de mistério que necessita destes mitos.

Até no tempo de uma crise como a que vivemos...

É, aparecem sempre.

Esta sua nova série de trabalhos irá até à época moderna ou mesmo até à atualidade?

Fui professor durante 24 anos na faculdade e em todo o meu percurso recolhi material para pensar de uma forma independente a História de Portugal. Quando me reformei mantive o projeto de escrever estes ensaios, mesmo que estivesse indeciso devido ao muito trabalho. Até que um dia deu-me um ataque de loucura e comecei a escrever o primeiro, que por acaso até é dos que mais gosto.

Tem uma narrativa muito sedutora.

Embora não seja o mais inovador do ponto de vista da historiografia, está ali o Portugal medievo, a raiz do que vai ser o país que existe. Há a grande transformação que resulta do movimento dos concelhos e da reconquista, um cruzamento do islão com o cristianismo.

Essa parte do islão está presente nos seus livros e mudou radicalmente a observação histórica em Portugal. A que se deve?

Está sem dúvida, porque um dia enquanto aluno estava a trabalhar na tradução de textos e perguntei à professora o que é que havia do passado árabe. Ela disse: "Não há nada. O senhor tem muita confusão na sua cabeça." Eu disse que não, que conhecia milhares de páginas referentes a esse passado muçulmano. E na verdade, a arqueologia provou que Lisboa não era o centro do islão peninsular mas que tem uma presença razoável, tal como Évora e Beja.

Por isso é que o Estado Islâmico gostaria de voltar a ocupar o Al-Andaluz de novo?

Com certeza, aqueles loucos lá dos jihadistas dizem isso, aliás como os loucos de Israel. Que querem o Grande Israel, uma loucura que recusa o processo histórico. Que querem não só ocupar Israel como também, com alguma legitimidade, ser portugueses. Ou seja, aqueles judeus que foram expulsos ou fugiram desde o século XVI querem assumir a nacionalidade portuguesa.

Dos seus estudos até ao atual islão é um salto temporal gigante. Choca-o um islão tão diferente do que estava na Península Ibérica?

É diferente no sentido de que do ponto de vista da época era um polo de desenvolvimento. A civilização islâmica do Al-Andaluz foi um foco de transmissão do pensamento grego e de grandes novidades, mas é evidente que a guerra medieval e moderna não era uma brincadeira. Ficaram traços culturais mas não propriamente na religião expressa.

Mesmo que até hoje "exportemos" jihadistas para o Estado Islâmico?

Que vieram das ex-colónias portuguesas, por exemplo. Temos de ter consciência do que é que somos porque esses mesmos homens foram islamitas e antes tinham sido cristãos e antes tinham sido de outras religiões romanas e anteriores. Não se pode impor a cultura e a religião pela força, tal como não se pode impor a visão mais científica da história do mundo.

A sua tese de doutoramento sobre a Inquisição em Évora mostra como a Inquisição tenta fazer isso ao longo de 250 anos. Concorda?

Fez. Não tentou, fez. Isto é, foi estabelecido e não bastava que o indivíduo aderisse interiormente ao islão, eles queriam saber se o seu pensamento estava de acordo com a linha dogmática e a prática que a Igreja tinha estabelecido. Não se podia afastar dessa linha e isso teve uma influência muito grande, e que ainda hoje se mantém, na sociedade portuguesa.

Quando escolhe esse tema para a tese queria afrontar a herança do regime criado por Salazar?

Não, nasceu numa tentativa de mostrar que o pensamento moderno tinha que ver com o conflito entre os cristãos-novos e os cristãos-velhos. O meu estudo sobre a Inquisição portuguesa começou com o estudo de Espinosa, e quando o faço vou-me defrontar com a família dele, sobretudo a alentejana da parte da avó materna, que foi perseguida pela Inquisição desde o início. Depois, vou encontrar também no Norte do país outra parte. Quando começo a ver a riqueza daqueles processos pensei: isto é um mundo. Havia mais de 40 mil processos.

Qual o propósito da tese?

Um historiador não pode ter como ponto de partida atacar, o ponto de partida deve ser a verdade e não deve ter medo de a dizer.

Os historiadores de hoje não facilitam demais esse crivo da verdade?

É evidente que muitos estudos da Inquisição esqueceram-se das vítimas. Dizem como é que funciona mas não que gente era aquela.

Ignoram o perfil das vítimas?

Sim, que era fundamental. E havia a tese de que, julgo que a liquidei contando a parte das vítimas, Portugal tinha sido libertado das guerras religiosas como se aquilo não fosse uma guerra insistida e secular e as vítimas fundamentais não fossem sempre os cristãos-novos.

Havia um claro objetivo?

De controlo. Desde as bulas, desde o número de vítimas e, sobretudo, de mortos e fugitivos. Era contra essa comunidade fundamentalmente mas é contra todo o pensamento discordante. Quase não há protestantes vítimas da Inquisição portuguesa e os que há são em boa parte estrangeiros.

Nos últimos anos têm sido publicados muitos trabalhos de historiadores sobre o tempo de Salazar. não existirá um revanchismo porque são historiadores que foram perseguidos pelo regime?

Eu não li, por exemplo, o livro do Fernando Rosas mas creio que todas as épocas têm de ser iluminadas. Já antes me chocava profundamente que os alunos fossem incitados a estudar na época contemporânea sobretudo os vultos que tinham apoiado o fascismo ou tido papel no regime, quando os pensadores antifascistas, como era o caso de António Sérgio, não eram importantes. Qual é o pensar atual que tem a estatura do António Sérgio? Há algum trabalho absolutamente marcante de fundo dedicado à obra do António Sérgio? Dá muito trabalho e é preciso gastar muitos miolos! Mas quem diz o António Sérgio, pode dizer o mesmo sobre uma série de figuras da resistência antifascista que não mereceram um estudo aprofundado até agora.

Em contraponto, figuras como Caetano e Salazar são estudadas à exaustão...

Tudo bem, desde que seja com rigor. Não tenho nada contra, pelo contrário, desde que não digam só banalidades ou seja uma história conceptual, que não vai aos factos incómodos.

Nem usa a palavra fascismo...

É como no caso da Revolução de 1383, que as pessoas continuam a chamar de Crise. Crise há todos os dias por aí aos pontapés, aquilo foi uma revolução porque o poder caiu na rua.

Até hoje há medo de usar a palavra revolução porquê?

Têm medo. Curiosamente, foi Marcelo Caetano que oficialmente usou essa designação sobre 1383. Ou seja, os chefes podem ter a coragem de chamar os bois pelos nomes, mas a arraia-miúda tem medo de pegar o boi pelos cornos.

Qual a razão para os historiadores fugirem do período de 1974 e 1975 e não recolherem depoimentos dos protagonistas enquanto podem?

Creio que é uma pena sobretudo porque a História tem montanhas de ramos e há um que é fundamental: ouvir os depoimentos e o estabelecimento dos factos para depois se poder interpretá-la melhor. A História contemporânea é a mais incómoda porque os atores estão vivos, tem as famílias e todos querem ficar bem no retrato. Esse retrato tem pontos negros de um lado e pontos brancos de outro, portanto, não é muito fácil traçar uma linha divisória onde de um lado fica o bom e do outro lado está o mal. A História não é assim, nem a vida é assim.

É um erro os historiadores não se estarem a preocupar com esse levantamento?

Acho que sim, apesar de ter havido um determinado período em que ainda surgiram fontes dos próprios atores porque vieram contar o que se passou. Eu sou um cidadão do século XX e XXI, mas não sou especialista em História contemporânea. Não basta ser cidadão para ser especialista porque a História contemporânea exige um manuseamento de fontes que vão até ao infinito. É claro que fazer História é selecionar, tem de se intuir por onde passa o movimento, aquilo que é decisivo, situação que é difícil quando se fica preso e atolado em tanta informação disponível hoje em dia. Vivemos uma época em que um indivíduo recebe milhares de informações num mesmo plano e tem dificuldade em conseguir pôr a cabeça de fora para equacionar.

Leu a última História de Portugal, coordenada por Rui Ramos, com Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Monteiro?

Não perdi muito tempo e acho que o jornal Expresso fez um mau trabalho em a apresentar como a História oficial. Um dos colaboradores foi meu aluno, o outro é meu amigo e colega na faculdade. Como li mal essa História não quero fazer uma apreciação, mas acho que a contestação à parte da História contemporânea foi recorrente. Eu passei os olhos e não me revi na parte contemporânea.

Até porque viveu muito daqueles tempos contemporâneos, pois esteve preso em Peniche?

Exatamente.

Discute-se qual foi a grande fuga de Peniche, a de Dias Lourenço ou aquela em que Álvaro Cunhal esteve envolvido. Qual é a sua opinião?

A minha opinião é que do ponto de vista humano a mais impressionante é a do Dias Lourenço. É uma coisa quase de milagre! Mas do ponto de vista político é a de Cunhal. Foi de um impacto brutal para o regime, começa ali a descrença total.

Foi um dos fundadores do jornal A Capital e jornalista. Como é que vê o jornalismo de hoje?

Muito preocupado, tanto que até evito dar entrevistas. Hoje para se ser um jornalista consciente é preciso ter muita coragem porque não é só a competição própria do mundo contemporâneo mas porque agora não há trabalhadores, existem mercados. Que lançam a competição e a classificação entre os homens em vez de se caminhar para a fraternidade entre os homens, que é uma ideia do cristianismo primitivo e que foi traída ao longo de toda a história da própria Igreja, que é também a matriz do Papa Francisco. Chegamos ao século XX e vê-se como esta matriz foi traída, e agora na época contemporânea continua com o lançar dos homens uns contra os outros.

O posicionamento do Papa Francisco poderá alterar alguma coisa na Igreja?

Claro que na Igreja houve sempre correntes muito fortes no sentido da fraternidade e da assistência pública. Durante muito tempo a assistência pública era oriunda da Igreja, ainda hoje tem muito que ver com ela, embora muitas vezes em moldes que não julgo os mais corretos, porque é a do assistencialismo.

Chega a esta idade conhecido como historiador. Não preferia ter sido poeta ou dramaturgo, afinal, fez várias caminhadas nesse sentido.

Na minha infância e na juventude era a ficção e os poemas. Depois, tive muita dificuldade em estudar e fui para Direito porque era o curso em que se ganhava algum. Não era para Letras porque "Letras eram tretas" como se dizia na altura. No entanto, desisti nas provas orais de Direito e houve um amigo que me foi matricular, com o seu dinheiro, na Faculdade de Letras, em Histórico-Filosóficas. Onde estive um ano a estudar a sério, mas no segundo ano estava envolvido na luta política e deixei o estudo.

E ficou mais perto da poesia...

Sim, foi de facto a minha primeira escrita. E a primeira novela escrevi-a depois de sair do seminário, tinha como o título "Os anjos também fazem greve". Que era uma greve de fome dos seminaristas...

Estava a pedi-las desde cedo...

Estava a pedi-las logo. Quando entro em História gostei do Fernão Lopes, agarra-me ainda na instrução primária. Quando chego à prisão, começo a querer aprofundar e envolvo-me na Filosofia, até que em Peniche comecei a ler muito sobre História. Li à procura de um princípio, depois essa leitura levou-me para este caminho e não estou arrependido. Mesmo que esteja ansioso por me libertar deste projeto. Vou escrever mais um volume, se continuar vivo, que já está muito avançado. É após a Restauração e quero, provavelmente, chegar ao Marquês de Pombal. Quero entrar largamente na primeira metade do século XVIII.

No início da entrevista falámos sobre a dominação filipina. Há uns anos, José Saramago disse que Portugal faria parte de uma União Ibérica dentro de 50 anos. Acha que isso vai acontecer?

A União significa o empobrecimento do ponto de vista cultural e histórico. É um apagamento que pode acontecer e sei que hoje em dia querem fazer muito pior do que isso quando se vê o apagamento face a uma Europa. Que é muito diferente da Ibéria e de nos quererem apagar. O que me preocupa muito hoje é o futuro da língua portuguesa, basta ver que própria universidade portuguesa aceita e promove teses em inglês. Como é que se pode passar um aluno que não use a língua materna? Isso é completamente impossível! Usam um emblema patriótico na lapela, mas não vejo preocupação com a língua portuguesa. Não vejo o ministro Nuno Crato sequer preocupado com a língua portuguesa.

"A História exige rigor e não nos deixa ir atrás de uma fantasia"

Se só tivesse direito a ler um livro qual era o preferido: um de Espinosa ou um de História?

Talvez preferisse livros como os de Homero, que envolvessem a poesia e a História e me entusiasmassem pela beleza da forma e do conteúdo e que me contasse uma história.

E Homero faz isso?

O Homero faz isso.

E dos nossos?

O Camões, para mim, continua a ser um grande poeta, tal como o Fernando Pessoa é um outro grande poeta. Mesmo que o Camões seja o mais querido tanto no lírico como no épico.

Nunca sentiu vontade de escrever um romance histórico sobre um momento que considere importante?

O trabalho em História é desumano e tira-nos o tempo. As pessoas não imaginam a brutalidade de informação que temos de manipular para poder escrever meia dúzia de páginas que digam alguma coisa de novo.

Por isso é que falo em romance histórico, que levaria menos tempo a escrever.

Eu interessei-me pelo teatro, escrevi duas peças que têm que ver com a História. Há uma de que gosto bastante, que é uma peça que escrevi sobre D. João II e que de certo modo equaciona todo o problema da expansão.

Mas o romance histórico é hoje uma coisa bastante popular e o senhor, que tem mão para escrever ficção, resolvia o assunto num instante...

Porque eu não quero. Na História, porque há quem faça romances históricos, começam a inventar. E eu tenho medo de inventar. Isto é, a História exige rigor e não nos deixa ir atrás de uma fantasia. Se o fizermos, perdemos todo crédito. Ou, ao ir-se por um certo caminho, inventa-se uma personagem que não cabe na figura central. É tarde quando descobrimos que não era aquilo.

É verdade que a maioria dos romances históricos que proliferam por aí desvirtuam o real?

Há coisas incríveis. Claro que depende do talento de cada um e da informação que se reuniu para criar. Por exemplo, o Mário Cláudio é um homem que navega muito bem nessas narrativas. É um nome de que me lembro agora. Eu não tenho nada contra o romance histórico, o único problema é achar que se abusa um pouco do género no tempo que corre.

Estão a ser comemorados os 600 anos sobre a conquista de Ceuta. Foram até publicados três volumes de historiadores sobre o assunto. Considera que seis séculos depois ainda alguém tem interesse em perceber os objetivos dessa conquista?

Aproveito para usar um adjetivo: carismática. Porque é uma data que marca o início da expansão portuguesa. Quanto a novos estudos, é claro que é preciso inventar um pouco hoje em dia.

Porque já foi tudo estudado?

Praticamente. A historiografia do século XX e os historiadores do século XX discutiram e interpretaram toda a documentação portuguesa. Pode ser que haja alguma documentação muçulmana que sugira novas situações, mas duvido.

Um dos autores recorreu aos trabalhos dos investigadores marroquinos que trabalham nas universidades francesas.

Mesmo assim, foram publicados muitos documentos por académicos franceses já no século XX. No caso de historiadores marroquinos ligados a Espanha, sei que também estão evoluídos na documentação. Não conheço e não quero de maneira nenhuma pronunciar-me sobre eles.

http://www.dn.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=4732822&page=-1