Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


10-06-2007

A descoberta de um país bilíngue Carlos Chaparro


Carlos Chaparro (*)

O XIS DA QUESTÃO - Cabo Verde pensa e fala em crioulo, mas tem três semanários, seus únicos jornais, redigidos e lidos em português. Discute os seus problemas em crioulo, mas se informa em português, pela televisão e pelo rádio. Canta e dança em crioulo, mas se expressa em português quando precisa perpetuar, em linguagem escrita, as emoções da alma poética do seu povo.

1. Crioulo, a língua materna

De Praia, Capital de Cabo Verde - A língua oficial é o português, ensinado com rigor gramatical nas escolas. Mas não deve ser nada fácil ensinar a escrever e a falar português a crianças que, nas ruas e na intimidade das famílias, só falam e só ouvem crioulo. Porque o crioulo é a língua que verdadeiramente dá identidade e unidade a Cabo Verde.

"Em Cabo Verde, a vida decorre em crioulo", disse ou escreveu Jorge Amado, ao visitar Cabo Verde já independente. E assim é. Do mais letrado e ilustrado habitante das cidades ao mais desprovido trabalhador dos campos ou dos mares, os caboverdeanos se entendem em crioulo, nas dez ilhas do arquipélago. Entre eles, o crioulo ocupa o lugar e a função de fator determinante da identidade nacional. Em crioulo tudo nomeiam e exprimem, nas tramas do comunicar-se, para viver e sobreviver.

Nem no seminário, que em duas tardes ministrei a jornalistas da terra, o crioulo desapareceu. Durante as palestras, eu e os colegas da platéia nos entendíamos perfeitamente em português. Mas, nos intervalos, entre eles, só se falava crioulo, mesmo quando eu fazia questão de permanecer nas rodas, tentando entender o que diziam.

Ainda que não compreendesse o que falavam, jamais me senti excluído ou indesejado. Ao contrário. Desde o início do convívio mais próximo com os caboverdeanos, ficou claro para mim que o que eles pretendiam, ao conversar em crioulo, não era excluir-me, mas que eu me habituasse à sonoridade da língua, e a aprendesse, para melhor me integrar aos grupos. E quase o conseguiram.

Na verdade, o crioulo é a língua materna de Cabo Verde. Como nos ensina a professora e pesquisadora caboverdeana Dulce Almada Duarte, em seu livro Bilingüismo ou diglossia (Praia, Spleen Edições, 1998), "nenhum de nós, por melhor que fale a língua portuguesa, se identifica através dela como caboverdeano. E isso porque o português, embora fazendo parte do nosso universo lingüístico, não é a língua materna dos caboverdeanos, mas um instrumento de comunicação de uma minoria que, por via de regra, o aprendeu na escola, e que dele se serve normalmente em situações formais (...)".

2. Português, a língua da alfabetização

As palavras da Dulce Duarte, retiradas de obra editada em 1998, recortam um cenário herdado da época colonial, quando o acesso à língua imposta era uma forma de promoção social.

Mas, embora com raízes fincadas nesse passado distante, o cenário mudou. Cabo Verde é hoje um país de poucos analfabetos. Garante escola a todas as crianças em idade de freqüentá-la. E em português alfabetiza as novas gerações. Nem poderia ser de outra maneira, porque o crioulo, embora de uso intenso e generalizado, é ainda uma língua sem gramática e sem articulação sistêmica.

Na página 22 do seu livro, Dulce Duarte arrisca a tímida predição de que "pode acontecer que, um dia, todos os caboverdeanos venham a ser realmente bilíngües". Pois em nove anos a predição se realizou, ou está a caminho disso. Falar e escrever em português deixou de ser privilégio das elites.

Tive prova disso na manhã de domingo passado, no mais belo pedaço urbano de Praia, o Platô. Em meio a um passeio pela principal e mais histórica praça da cidade, conversei longamente em português, sem dificuldades, com Maria da Graça, menina que não teria mais de 12 anos.

E conversamos sobre o quê? Sobre a escola onde ela estuda e aprende portuguiês; sobre o Brasil que ela gostaria de conhecer; e sobre as novelas brasileiras da Record, a que ela assiste na televisão.

Dois dias antes dessa conversa, visitei pela manhã um município do interior da ilha de Santiago. Em carro com tração nas quatro rodas, serpenteei quase cem quilômetros entre montanhas cinzentas, cobertas de jôrra vulcânica. Passei por vários lugarejos escassamente habitados, e por imponentes cenários de aparência desértica, onde, em meio às curvas, ora apareciam ora se escondiam casas isoladas de famílias que vivem do campo.

Quase não se via gente. Mas, no regresso a Praia, quando se aproximava o horário de início de aulas para as turmas do período da tarde, enchi os olhos com a mais emocionante imagem colhida nos poucos dias aqui passados: crianças, às centenas, de uniforme escolar, se aglutinavam nas proximidades das escolas, vindas de mais longe ou de mais perto, pelas ocultas veredas das montanhas.

Ali estava o retrato de um Cabo Verde que a professora Dulce ainda não havia vista, em 1998: um país com escola para todas as crianças e com todas as crianças na escola.

É a Nação bilíngüe em acelerada elaboração. Nação que pensa e fala crioulo, mas que tem três semanários, seus únicos jornais, redigidos e lidos em português. Nação que discute seus problemas em crioulo, mas se se informa em português, pela televisão e pelo rádio. Nação que canta e dança em crioulo, mas se expressa em português quando precisa perpetuar, em linguagem escrita, as emoções da alma poética do seu povo.

Que bom foi ter vindo a Cabo Verde!

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NOTA DE RODAPÉ - Depois de Cabo Verde seguirei viagem, para reencontros com a Primavera de Portugal. Sem autorização prévia, tirarei duas semanas de férias, nas obrigações de colunista do Comunique-se. Novo texto, portanto, só no dia 15 de junho.

(*) Carlos Chaparro é português naturalizado brasileiro e iniciou sua carreira de jornalista em Lisboa. Chegou ao Brasil em 1961 e trabalhou como repórter, editor e articulista em vários jornais e revistas de grande circulação, entre eles Jornal do Commercio (Recife), Diário de Pernambuco, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, Diário Popular e revistas Visão e Mundo Econômico. Ganhou quatro prêmios Esso. Também trabalhou com comunicação empresarial e institucional. Em 1982, formou-se em Jornalismo pela Escola de Comunicação de Artes, da USP. Também pela universidade ele concluiu o mestrado em 1987, o doutorado em 1993 e a livre-docência em 1997. Como professor associado, aposentou-se em 1991. É autor de três livros: "Pragmática do Jornalismo" (São Paulo, Summus, 1994), "Sotaques d'aquém e d'além-mar - Percursos e gêneros do jornalismo português e brasileiro" (Santarém, Portugal, Jortejo, 1998) e "Linguagem dos Conflitos" (Coimbra, Minerva Coimbra, 2001). O jornalista participou de dois outros livros sobre jornalismo, além de vários artigos (alguns deles sobre divulgação científica pelo jornalismo), difundidos em revistas científicas, brasileiras e internacionais.

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