03-05-2015A poética como definição do indefinido, ou como o individual se projeta na subjetividade do entendimento Paulo M PintoA poética como definição do indefinido, ou como o individual se projeta na subjetividade do entendimento
Alguns cantos da Odisseia continuam a despertar em nós o fascínio que despertam os enigmas que nada de estranho nos apresentam, mas que indizivelmente fogem à compreensão que as palavras, quase sempre imediatas, procuram abarcar. Nesse distante poema homérico, de mais de 2.500 anos de sentidos e leituras, um aedo é chamado a declamar, tal como sucederia nas comuns noites num palácio em que se reuniriam em torno do lume os grandes, os nobres, os guerreiros e os aventureiros, aqueles que tinham novas para transmitir. O aedo, qual metáfora do poder do seu olhar, é cego. Mas fala, declama. É escutado. E as “novas” poderiam ser plenamente novas ou não. Os mitos nasciam desse afastamento a um tempo concreto mediante a assunção de uma dimensão primordial, organizadora de uma ordem, de um sistema. Ouvir um aedo a declamar a sua poesia era, quer escutar novidades, num tempo onde o Saber era lento na transmissão, quer voltar a entrar dentro de conhecimentos ancestrais, já sabidos, em nada novos, mas constantemente rememorados e revalidados. A poesia era verdadeiramente uma linguagem de códigos, de descoberta. Se a prosa descrevia o linear, os tratados, as contas, os registos, a poesia, com o seu ritmo, com a rima e a entoação, era o campo do que não podia ser apenas ouvido, mas tinha de ser entendido. A poesia era hermenêutica em potência, era abertura à interpretação, era convite a elaborar e a descobrir. Não será, obviamente por acaso que muitos Textos Sagrados se encontram nessa forma ritmada que faz entrar o leitor e o ouvinte numa dimensão fora da linguagem normal, num quadro de ritmicidade, numa valoração de ritual, de contacto com uma Verdade fora da compreensão imediata. Teria o mesmo valor o oráculo da Pitoniza se ele fosse proferido em prosa? Naturalmente, não. A forma poética era o garante de que houvera uma ligação a um divino que se deixara transformar em conhecimento. A poesia era a forma da profética, por excelência. Tal como o poeta era, inevitavelmente, uma porta de acesso ao divino, ele mesmo como que um profeta, alguém tocado,sacer. A cegueira que tradicionalmente se aplica à definição da justiça, retomando a imagem egípcia do equilíbrio da balança, não é mais que a necessidade de o conhecimento se criar sem os constrangimentos do que nos pode tolher o pensamento através dos sentidos. Ser cego não é não ver. Ser cego é ser capaz de olhar para dentro, procurando uma solidez que, sendo ilusória também ela, nos referencia a ideias superiores ao tempo, em vez de ter como referencia única o exterior, inevitavelmente volátil, móvel e em contínua mutação. O saber da justiça é em tudo próximo ao da poética: procura o que constantemente nos foge. Isto é, a capacidade de olhar para além do imediato. E o imediato é-nos dado por regras, por definições de interpretação fácil, por normas escritas numa linguagem depurada de interpretações, como se fossem elas que nos fizessem chegar a universais amplos e inquestionáveis de ética. E é neste ponto que se confirmam as mais recentes teses sobre a criação do conhecimento no nosso cérebro e do lugar que a emoção desempenha num sistema até há pouco tempo definido apenas pela capacidade lógica, aquilo a que nos habituamos a chamar de raciocínio. Mas quão enganados estávamos nesse olhar para a capacidade de pensamento, de criar saber. Se, por um lado, era atrativo termo-nos como definidores de uma forma de saber perfeitamente lógica e capaz de ser reescrita em fórmulas tangíveis, por outro, a poesia, a capacidade de entender para além do que está plenamente transportado para os sons, abre-nos possibilidades de valorização da espécie e da própria concepção de humano. É que a poética abre-nos a porta para o único e o irrepetível. A grande tentação de reduzir a capacidade de pensamento e de leitura a uma lógica encontrava-se na uniformização, na normatização, na nivelação. Se a prosa de um relatório se quer clara para que todos os leitores a absorvam exatamente da mesma forma, a poesia quer que o leitor seja o seu continuador, lendo o que a sua estética pedir e desejar, levando cada um a um novo poema que é completado no momento exato da fruição. Nada se repete, nenhum leitor é igual, nenhuma norma se sobrepõe à individualidade. Se a leitura a que nos viciamos, objectiva, nos liberta da responsabilidade de interpretar, a poética não nos deixa imunes nem nos possibilita escapar da responsabilidade de ser, de facto, leitor. Porque ler é criar interpretação, por mais incomodo que isso seja. E é neste momento, no irrepetível de uma leitura, mesmo quando realizada pelo mesmo leitor, que o aparentemente factual, porque implicado em cada momento, em cada contexto, no embrenhado de circunstâncias específicas do um espaço-tempo, que se dá o milagre de, ao fugir à linearidade da leitura de um “relatório”, se subir ao campo das ideias, dos sentimentos e dos sentidos, em que cada leitura se radica, já não no que de específico tem esse contexto constrangedor, mas sim no que de transversal e profundo a todos os leitores é possibilitado, qual revelação de ideias imóveis, estáveis e belas.
Um Texto Sagrado encontra-se nesta definição em que o factual é apenas a porta de acesso a uma Revelação. Reduzir uma revelação a uma prosa, sem a poética da interpretação, é circunscrever as ideias amplas de um sistema organizador ao simplismo de um folheto de medicamento, à descrição dos efeitos secundários e à sua aplicação. Parece ser eficaz, mas esquece um aspecto essencial: se o doente, o paciente, se mantiver, de facto, como paciente, imóvel, incapaz de reagir, ficará eternamente, paciente, sem a capacidade para se impacientar e ser ele mesmo o medicamento. A cura será ilusória e resultado apenas dos químicos externos. De dentro, nada. Apenas resignação às capacidades de algo que lhe é exterior, imposto, não seu e desenvolvido.
Publicada por Paulo Mendes Pinto à(s) 06:38
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