Com a demissão da ministra da Administração Interna e um pedido de desculpas tardio arrancado a ferros pela Oposição no debate parlamentar desta quarta-feira, António Costa não salva a imagem negativa do governo na gestão da crise gerada pelos incêndios que fizeram para cima de uma centena de mortos nos últimos quatro meses.
É claro que os partidos da Oposição agem com grande dose de cinismo ao quererem imputar toda a responsabilidade do ocorrido ao actual executivo, como se também eles não tivessem responsabilidades históricas – pelo que fizeram e pelo que deixaram de fazer nesta matéria ao longo dos anos. A começar pelo abandono da nossa agricultura em troca dos financiamentos europeus para autoestradas, passando pela opacidade da rede de interesses privados em torno do combate aos fogos e terminando no sempre adiado reordenamento florestal.
Mas eles estão no seu papel de explorar as debilidades do governo e a verdade é que este se colocou a jeito. Pelas dificuldades de organização e comando já na primeira vaga de incêndios, no Verão passado, pela aparente falta de decisões no período que se seguiu tendo em conta as dimensões da catástrofe ocorrida, e agora de novo pela incapacidade demonstrada de responder com eficácia à repetição da tragédia.
Entretanto, mesmo tendo em conta o elevadíssimo número de vítimas e a extensão sem precedentes da área ardida, o executivo ainda podia enfrentar a dor e a revolta dos portugueses se outra tivesse sido a reacção dos responáveis, a começar pelo primeiro ministro.
Uma sincera admissão de culpa, começando por demitir a ministra, que já tinha perdido todas as condições de continuar no cargo, uma particular palavra de conforto para com as famílias atingidas, garantindo-lhes todo o apoio para reconstruirem as suas vidas e uma manifestação inequívoca de vontade de tudo fazer para superar os problemas, teriam encontrado compreensão por parte dos portugueses e reconquistado pelo menos alguma da confiança perdida.
Infelizmente para as forças que apoiam a geringonça, não foi isso que aconteceu. O resultado está à vista – o fogo da revolta aumentou e o governo perdeu a iniciativa, que passou toda para a presidência da república e para os partidos da Oposição.
De forma inteligente, Marcelo fez o que Costa não quis ou não soube fazer – falar ao coração dos portugueses e garantir empenho total nas medidas indispensáveis para que a tragédia se não repita.
Peço desculpa pela imagem, mas não encontro outra melhor para dar conta do sucedido – a geringonça pegou fogo. É certo que o presidente ainda lhe deu uma nova oportunidade. Mas o carro vai em chamas. Veremos se daqui até sábado o executivo ainda consegue extinguir as labaredas que ameaçam consumi-la.
A actual solução de governo só foi possível porque, colocados perante a alternativa de novo executivo da direita, insensível às questões sociais como já fora o anterior, os partidos de esquerda, superando décadas de divisão e animosidade, conseguiram uma plataforma mínima de entendimento.
Contaram com a expectativa benigna de muitos e com a desconfiança de muitos mais, que entretanto souberam em parte superar graças a uma gestão virtuosa das finanças públicas.
Com a vantagem do novo primeiro ministro não ter a arrogância do anterior e também por saber sorrir. Não deixaria de ser amargamente irónico se ele agora caísse por afinal se revelar, na aparência, pouco sensível ao sofrimento alheio e não saber chorar.
Carlos Fino, jornalista português, correspondente internacional, vive em Brasília desde 2004.
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