22-06-2016Cabo Verde é uma excepção para os homossexuaisOs realizadores Marc Serena e Pablo García Pérez de Lara falam do documentário “Tchindas”. Por Amarílis Borges.
Pablo García com Tchinda Andrade[ DR ] RELACIONADAS “Vamos ver o que vai acontecer mais para a frente, se o vulcão pára”•PT com pé fora de África•Angola vai falar de direitos humanos em encontro de comunicação social•CPLP decide hoje adesão da Guiné Equatorial•Relatório dos EUA denuncia violação de Direitos Humanos em África• O jornalista espanhol Marc Serena juntou-se ao realizador Pablo García Pérez de Lara em 2013 para fazer um documentário que é uma história de vida da primeira homossexual a assumir-se publicamente em Cabo Verde, um retrato do quotidiano simples da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais) no Mindelo e a relação entre o Carnaval de São Vicente e as liberdades para os gays naquele país. E tudo começou com um conselho de Cesária Évora a Serena, dizendo que ele deveria regressar a São Vicente para ver esse “brasilin” (Brasil pequeno) durante o Carnaval. Horas depois de dizer isso a cantora cabo-verdiana morria. O jornalista espanhol levou a sério o conselho e regressou à ilha para fazer o documentárioTchindas. Num continente em que 36 dos 54 países criminalizam de alguma forma a homossexualidade, segundo a ILGA(organização internacional LGBT), Cabo Verde destaca-se pela tolerância, o que não o torna isento de preconceito e discriminação. Nesta entrevista, os realizadores falam da “situação única” que se vive na ilha de São Vicente.
Foi uma conversa com Cesária Évora que o motivou a voltar a Cabo Verde para o Carnaval de São Vicente. Mas já sabia que faria um filme sobre transexuais?Marc: Conheci Cesária Évora em casa dela, 36 horas antes da sua morte. Passamos uma tarde juntos com Tchinda e Edinha. Elas tinham uma relação muito boa. Inclusive, uma vez a Tchinda magoou o rosto e Cesária pagou-lhe os remédios. Foi ela que me disse que deveria voltar para o Carnaval e foi o que fiz para rodar o filme. Tivemos a sua bênção. Filmar Tchinda, Edinha e Elvis era o mais natural. Eram as pessoas que conhecia melhor. São fortes e estão habituadas a serem observadas, por isso a câmara não as intimida. Também gostávamos da ideia de rodar um filme ali porque a situação que se vive na ilha é única. Cabo Verde é uma excepção: muitas mulheres trans de outros países não podem nem andar livremente na rua durante o dia. Estiveram quanto tempo a filmar? Como foi a reacção da população?Pablo: Aproximadamente um mês. Chegamos a São Vicente três semanas antes do Carnaval e saímos uma semana depois. A recepção do povo do Mindelo foi extraordinária. Cativaram-nos imediatamente com a sua alegria, música e hospitalidade.
Como fizeram a aproximação às personagens do filme?Pablo: Tínhamos uma ideia muito clara de mostrar com a nossa câmara a beleza do quotidiano e a partir daí aproximarmo-nos o máximo possível da essência das pessoas filmadas. Era muito importante para nós olhar com alegria e gravar a partir da proximidade, respeito e confiança. Para isso usamos lentes fixas e filmamos quase tudo com planos estáticos, à altura dos olhos, salvo as distâncias, lembrando o mestre japonês Yasujiro Ozu. Quais foram os maiores desafios para conseguir realizar este filme, dado que é independente?Pablo: É um trabalho produzido pela Doble Banda, uma produtora independente de Barcelona que há 18 anos faz documentários e filmes de autor. Para começar foi difícil encontrar financiamento e por isso batemos às portas de meio mundo. Numa fase mais avançada, quando viram a qualidade do filme começou a aparecer algum apoio institucional. Assim, o filme é mais fruto do coração, trabalho e esforço das pessoas que trabalharam nele do que do pouco financiamento que conseguiu.
Tchindas passou por que países de África?Marc: Até ao momento, apenas estreamos em Cabo Verde, no festival de cinema da Praia, e no Mindelo. Eram os dois lugares mais importantes para nós e lá gostaram muito. Agora gostaríamos de estrear noutros sítios, embora alguns programadores nos tenham dito que não podem transmiti-lo na televisão por causa do conteúdo. Que, certamente, não é nada sexual, mas há quem não goste do que vê e por isso censura.
Marc Serena, a produtora Yolanda Olmos e Pablo García Pérez de Lara | DR Consegue imaginar este filme a ser realizado no Senegal ou na Gâmbia, países vizinhos de Cabo Verde com leis que criminalizam a homossexualidade? Pablo: A verdade é que neste momento não conseguimos nem exibir nestes locais. A situação no Senegal e na Gâmbia está muito tensa. Há medo e detenções arbitrárias. Isto vai mudar num momento ou noutro. Esta caça às bruxas não faz sentido. Muita gente não quer debater o assunto. Fora do continente, Tchindas tem passado por vários festivais de cinema e as críticas não são apenas da comunidade LGBT. Notam uma vontade maior para se abordar temas relacionados com a identidade?Marc: Existe um grande debate mundial sobre a questão, inclusive chegou a ser tema de debate na campanha eleitoral dos Estados Unidos. Algumas pessoas são a favor da luta pelas liberdades e direitos humanos e há quem esteja a tentar minimizar o problema.
Acredita que este filme teria a mesma aceitação e sucesso se tivesse sido feito por alguém transexual? Pergunto porque existe muita dificuldade para as minorias entrarem no mercado do cinema e verem os seus trabalhos serem reconhecidos.Marc: Gostaríamos muito que as pessoas trans pudessem entrar no mercado do cinema de uma forma mais natural do que a actual. Passa-se o mesmo com as realizadoras, ainda são uma minoria. O primeiro passo para alterar isso é termos consciência. No nosso caso, estamos felizes por termos criado uma equipa muito diversa. Seria de esperar que a população de São Vicente, por viver numa ilha, tivesse uma mentalidade mais fechada em relação às opções de vida diferentes. Por que a população convive de forma tranquila com os homossexuais, como mostra no filme? Pablo: Há muitas razões para isso e uma delas é a igualdade de género de que goza a ilha. O empoderamento das mulheres neste país permite também que as mulheres trans o tenham. Marc: Numa das projecções, uma cabo-verdiana que estava no público disse-nos que é um país pobre e que por isso há menos tensões e lutas de poder do que noutros países. No filme não vemos preconceito nem sinais de perseguição. Ao mostrar essa comunidade que convive abertamente com os homossexuais tiveram receio de apresentar uma ideia exagerada?Marc: A situação de Cabo Verde é uma referência a nível regional ou africana, mas continua a existir discriminação. Embora proceda sobretudo do governo que não permite às pessoastrans que mudem o nome, não mostra apoio e não actua contra as discriminações a que elas sofrem. entrevista publicasa no "Cabo Verde é uma excepção" para os homossexuais - Rede Angola - Notícias independentes sobre Angola
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