Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


02-03-2015

Carta aberta ao governador Rui Costa, da Bahia


Caro Governador,

 

Mesmo no carnaval, há uma grande diferença entre vestir a camisa e se fantasiar. Penso nisso enquanto vejo várias fotos em que o senhor aparece, sorridente, com a camisa do Ilê Aiyê, bloco afro que, neste ano, homenageou a Jamaica. 

Em uma das fotos dá para ver, na manga da sua camisa, referência à Rebelião de Morant Bay. Esta foi uma rebelião que se gerou a partir de 1864 e teve grande importância não apenas na história da Jamaica, mas também em intensas discussões na Inglaterra sobre como os povos, principalmente os negros ex-escravos ou descendentes de escravos, são tratados por seus governantes. É importante que o senhor conheça tal história e, como já percebemos ser bom em figuras de linguagem, faça a relação com o que vem acontecendo com os pobres e pretos da Bahia e seus governantes, tendo em mente um dos desdobramentos mais recentes: o caso do Cabula.

 

A escravidão na Jamaica foi abolida em 1834, prevendo mais quatro anos de trabalhos forçados, como uma espécie de ritual de passagem da escravidão para a liberdade. Oficialmente, ex-escravos podiam votar, mas um imposto de votação muito alto fez com que fossem excluídos do processo democrático. Nas eleições de 1864, apenas 2.000 negros estavam aptos a votar, em uma população de 436.000 pessoas, na qual havia uma proporção de 32 negros para 1 branco. Revoltados com esta situação e com a extrema pobreza na qual se encontravam, agravadas por epidemias de cólera e sarampo, pela perda de plantações próprias (para alguns poucos que tinham acesso à terra) provocada, entre outras coisas, por um longo período de seca, pela quebra da indústria açucareira, por rumores de que a escravidão seria restabelecida para balancear a economia jamaicana, os negros resolveram se mobilizar.

 

Sensibilizado com a situação, Dr. Edward Underhill, britânico secretário da Sociedade Missionária Batista, escreveu à rainha da Inglaterra (de quem a Jamaica era colônia), mas sua carta foi interceptada pelo governador Edward Eyre, que negou qualquer problema. Quando a resposta da Rainha Vitória chegou, perceptivelmente influenciada pelas palavras do governador, ela apenas dizia que os negros deveriam trabalhar mais, negando-se a ajudá-los. Um rico fazendeiro e político mestiço chamado George William Gordon (um dos rostos estampado na sua camisa, governador) começou a incentivar o povo a encontrar maneiras de se fazer ouvido, e seu apelo achou terreno fértil no diácono negro Paul Bogle (também na sua camisa, governador).

 

Em 7 de outubro de 1965, precisando trabalhar, um ex-escravo invadiu uma fazenda abandonada e foi mandado para a prisão, enfurecendo ainda mais o povo negro. Durante seu julgamento, a manifestação indignada de outro homem negro, James Geoghegon, e a violência com que a polícia tentou calá-lo e tirá-lo da Corte, levou a uma briga generalizada entre negros e policiais. Dois policiais foram atacados com paus e pedras, o que levou vários dos presentes ao julgamento, tendo ou não participado dos ataques, serem acusados e presos por tumulto, resistência à prisão e ataque à polícia. Entre eles, estava Paul Bogle, que conseguiu fugir.

 

Em 11 de outubro, no entanto, Paul Bogle voltou a Morant Bay e, com um grupo de manifestantes, foi recebido por uma milícia policial que abriu fogo e matou sete deles. Com seus mortos, os manifestantes recuaram, mas foram perseguidos pelas tropas enviadas pelo governador John Eyre, com a ordem de levarem Paul Bogley de volta a Morant Bay, a qualquer custo, para ser julgado. Sobre essa perseguição, um dos soldados depois se regozijou: “… nós matamos todos com quem cruzávamos… homem ou mulher ou criança”. A chacina resultou na morte de 439 jamaicanos negros e na captura e posterior execução de mais 354, sem julgamento. Entre estes últimos estava Paul Bogley (esse aí mesmo, da sua camisa), executado no mesmo dia em que foi capturado. Outros 600 negros (homens, mulheres e crianças) foram torturados e surrados, e milhares foram jogados nas cadeias, com penas longas e, de novo, sem qualquer julgamento. Gordon, aquele político que disse que o povo negro deveria arrumar um jeito de mostrar as reais condições em que viviam, e que, não se esqueça: estampa a sua camisa, também foi executado, depois de ser levado de Kingston até Morant Bay, para que sua morte pudesse acontecer nos tribunais de exceção, sob lei marcial.

 

O senhor pode procurar e repercussão e as mudanças que as atitudes do governador John Eyre provocaram na relação do governo inglês com a escravidão e o governo das colônias, governador, porque quero deixar essa história fresca na sua cabeça para que o senhor responda à pergunta: ao exibir, sorridente, os rostos de tantos heróis da luta contra a escravidão, a servidão e as injustiças sofridas pelo povo negro ao longo da História, o senhor estava vestindo a camisa ou se fantasiando? E tomo a liberdade de perguntar porque me lembro do senhor, há menos de um ano, na qualidade de deputado e candidato a governador, na aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e Combate à Intolerância Religiosa do Estado da Bahia, celebrando entre os nossos, como se fosse um de nós: “Menino nascido e criado no bairro da Liberdade, periferia pobre da capital baiana onde vive o maior número de negros da América Latina, eu sei bem da importância desta nossa vitória.” aqui. 

 

Capital baiana onde vive o maior número de negros da América Latina”. Palavras suas, governador, que só fazem sentido se vierem acompanhadas do respeito à NOSSA história. E se o senhor acha que a história do povo negro da Jamaica não lhe diz respeito, tomemos então a história dos negros da Bahia. Não sem antes nos lembrarmos da frase que talvez o senhor tenha ouvido nos seus tempos de militância sindical: “A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. História que vai continuar se repetindo, se não prestarmos atenção a ela. E com maior intensidade a cada geração que a herda, porque ações e atitudes que tentam apenas mascará-la são construídas sobre escombros cada vez mais frágeis e contestáveis, exatamente porque ela, a História, se acumula e ganha peso.

Na sua camisa, governador, há também o rosto de Nanny dos Maroons, assim chamada por ter sido uma das mais importantes líderes quilombolas (conhecidos como marrons, na Jamaica) do século XVIII. Passando para a Bahia, talvez sua luta possa ser comparada à de Zeferina, mulher igualmente guerreira e líderança no Quilombo do Urubu. Pesquise um pouco, governador, e o senhor vai perceber que a Revolta do Urubu foi a revolta mais famosa organizada por um quilombo, e aconteceu em Salvador no ano de 1826. Silvia Maria Silva Barbosa, em “O poder de Zeferina no Quilombo do Urubu”, nos ensina que: “O poder de Zeferina tem feito parte da memória histórica de resistência da comunidade suburbana, que tem permitido salvaguardar essa história de luta enquanto referencial guerreiro de resgate da autoestima dessa população excluída economicamente, principalmente. E é nesta compreensão mítica de resistência negra que a guerreira Zeferina “renasce das cinzas”, conferindo poder de memória subversiva a cada ato de protesto e luta de libertação no bairro do atual quilombo e arredores baianos.” Sabe onde ficava o Quilombo do Urubu, governador? No Cabula. Ohistoriador João José Reis, ao falar sobre quilombos e rebeliões escravas, diz que “A própria existência do quilombo e sobretudo sua defesa militar e incursões em território inimigo podem ser consideradas revolta”. Analisando essa frase tendo em vista os acontecimentos atuais, ouso dizer que a existência de comunidades como o Cabula, no abandono em que se encontram por parte do poder público que nada mais faz do que criminalizar a pobreza que ele mesmo ajudou a construir ao longo dos anos, já pode ser considerada revolta. E resistência. E perpetuação desse poder mítico deixado por mulheres como Zeferina, não sendo passível de destruição porque está em cada mãe, esposa, avó, namorada, filha, amiga que sobrevive aos seus mortos; e é captado e sentido igual por quem tem sensibilidade e humanidade para tanto.

 

A História é um fio inquebrantável, governador, e por isso acho importante falar de rebeliões escravas. E repressão por parte das polícias. Outra rebelião importante a ser lembrada, e que também possui ligações com o Cabula, é a Rebelião Malê, cuja repressão foi uma das maiores já perpetradas pelo governo brasileiro, mas cuja repercussão, hoje sabemos, foi de suma importância para começar a se pensar sobre o fim da escravidão no Brasil. Imagine-se, governador, vivendo naquela época e sendo responsável pela segurança pública da capital baiana onde já vivia, talvez, o maior número de negros da América Latina. Depois, informe-se um pouco sobre o que foi essa rebelião e as ações tomadas contra os negros da Bahia, sendo eles participantes ou não, e responda daqui, da segurança concedida por décadas de distanciamento: o senhor estaria do lado dos que combatiam o status quo, ou dos que combatiam os que combatiam o status quo? Pergunto porque, ainda hoje, sendo quase unanimidade a condenação à escravidão, podemos ler lá no site da polícia que o senhor coordena: ”(…) E assim tem feito a Polícia Militar da Bahia durante seus 181 anos de existência prestando relevantes serviços a (SIC) Nação e ao Estado baiano, quer seja através de inserções para conter rebeliões de escravos, como na Revolta dos Malês; (…)”. Analisando, à luz do que se conhece hoje - porque é hoje que o site ostenta tal informação -, que instituição governamental, a não ser uma que tenha sido criada para combater aquele tipo de situação e não tenha se livrado ainda dos ranços de nascença, se orgulharia, a ponto de colocar em sua apresentação institucional, o fato de ter combatido rebeliões escravas, autorizando que falemos em genocídio do povo negro? A sua polícia, governador. A polícia que o senhor coordena, a partir desta capital baiana onde vive o maior número de negros da América Latina, descendentes da escravidão. A sua polícia; sobre a qual o senhor declarou, em sua conta em uma rede socialSegurança Pública é um dos temas que chamei p/ mim. Estarei ao lado dos cidadãos de bem q doam suas vidas a serviço da população baiana.

 

Chame para si também, governador, a tarefa de entender a História que nos conduz à situação de insegurança pública que vivemos hoje. Um excelente ponto de partida é exatamente o contexto histórico e as reações a partir de rebeliões escravas como a dos Malês. Aqui, governador, valho-me do trabalho da socióloga, historiadora e professora de criminologia Vera Malaguti Batista, na palestra “Medo, violência e política de segurança”. Vale a pena assistir na totalidade, mas abaixo saliento alguns pontos importantes.

ouça a seguir Vera Malaguti Batista, conversando sobre os cultos do medo, no vídeo 

Café Filosófico - Medo, violência e política de segurança (Parte 1/2)

 

 

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Café Filosófico - Medo, violência e política de seguranç...

 

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Vera Malaguti Batista parte da ideia de que precisamos entender que é o medo que produz as demandas por ordem e lei, e ele - o medo - sempre foi usado pela hegemonia conservadora para justificar políticas autoritárias e controle social. O discurso do medo sempre foi usado pelos colonizadores e passado adiante para os que governaram depois deles. No Brasil, com sua história violenta de extermínios e dominações, é assim desde sempre; e foi nas décadas posteriores à Independência que o discurso do medo se intensificou, com as várias rebeliões escravas que aconteciam país afora. Como inimigo a temer e, portanto, castigar e/ou eliminar, justificado pelo racismo científico, estava o africano, o negro da terra, o escravo, o fujão e desobediente, portador do caos e da desordem. É neste contexto, e com o objetivo de manter o status quo, ou seja, o regime escravocrata, que surge o Corpo de Polícia, mais tarde chamado de Polícia Militar. O medo de que os negros, em maioria numérica em algumas regiões, como Salvador, tomassem o poder, fez com que grandes esforços fossem concentrados na repressão das rebeliões. E é exatamente nesse momento que, com o governo fechando os olhos para o caráter político dessas manifestações, que os manifestantes e revoltosos começaram a ser criminalizados. Outro momento em que a criminalização é reforçada, governador, e com o seu passado de sindicalista o senhor deve saber muito bem, é durante a ditadura, o grande momento da Polícia Militar que o senhor agora coordena. Assim como as rebeliões escravas, as manifestações e as greves, por exemplo, foram desinvestidas do seu caráter político e tratadas como questões de polícia, para que os “desviantes” pudessem ser perseguidos, torturados física e psicologicamente, presos, desaparecidos, mortos. Antes, infundia-se o medo para justificar a barbárie com quem se levantava contra a escravidão, depois, para legitimar a luta contra o comunismo, inimigo que agora passa a se chamar “guerra às drogas”. Os métodos são os mesmos, apenas o inimigo muda de nome, permitindo que também seja mantida a estrutura de controle social repressiva e conservadora que, na época da escravidão, publicava nos jornais “precisamos ter uma polícia que a nós inspire confiança e aos escravos infunda terror”, pedindo mais polícia e mais violência no controle dos “violentos”, sem ao menos tentar entender ou questionar contra o que eles se rebelaram, sendo, no caso, a escravidão, violência por si só.

 

leia o artigo na íntegra em

Carta aberta ao governador Rui Costa, da Bahia | BUALA