27-05-2016 Como os angolanos inventaram o mundo *
O antigo jogador de futebol francês Lilian Thuram é hoje um activista pela igualdade e contra o racismo. Thuram que foi um exímio defesa direito esteve recentemente em Luanda para – dentre outras coisas – apresentar dois livros de sua autoria e um deles centra-se em pessoas negras que marcaram a história da humanidade, Thuram chamou o seu livro “As minhas estrelas negras”. Nunca li o livro mas consta que fazem parte da constelação de Thuram as angolanas Kimpa Vita (profetiza do Reino do Kongo) e Njinga Mbandi (rainha do Ndongo).
Achei muit
o interessante o conceito de abordar a influência de africanos e descendentes na história da humanidade, uma história que muitas vezes foi desumana para o africano mas não deixou de ser marcada pelos pretos, em particular na construção cultural do chamado Novo Mundo, a tal cultura que o historiador Ira Berlin designou de “Atlantic Creole” (crioula atlântica).
Entre os maiores contribuintes na formação dessa cultura crioula que teve início na costa atlântica africana e ganhou dimensão nas Américas estão os povos que habitam o que é hoje Angola. Volvidos cinco séculos, os traços de cultura angolana continuam bem visíveis nas Américas.
Por incrível que pareça, a generalidade das pessoas desconhece o facto que Angola exportou mais escravos para as Américas do que qualquer outro país africano, assim como é pouco divulgado que Portugal foi o principal fornecedor de escravos durante o período de vigência do comércio de escravos transatlântico. Com efeito, foi o reino de Portugal que desenvolveu o modelo de exploração colonial dependente da mão de obra africana quando colonizou o Brasil.
Dados que Nathan Nunn agregou com base na Trans-Atlantic Slave Trade Database mostram que Angola exportou mais escravos que a Nigéria, o Gana e o Benin combinados. A base de dados cobre 34.584 viagens entre 1514 e 1866, cerca de 80% de todas as viagens entre a costa atlântica africana e o Novo Mundo.
in “The Long Term Effects of Africa’s Slave Trades” de Nathan Nunn e Leonard Wantchekon
Estima-se que terão sido levados de Angola pouco mais de 5 milhões de pessoas, sendo que cerca de 20% não sobreviveu a travessia. O elevado número de angolanos exportados pode ser explicado pela relação diplomática entre o Reino de Portugal e o Reino do Kongo, o modelo de colonização do Brasil (que recebeu de África 4 milhões de escravos, maioritariamente angolanos) e o facto de Portugal ser o “fornecedor oficial” de escravos das colónias espanholas nas Américas.
Os portugueses foram os primeiros europeus a estabelecer contactos duradouros com as populações das vilas costeiras de África e encontraram no Reino do Kongo o parceiro ideal; uma nação organizada e populosa interessada em cristianizar-se e a estabelecer uma relação comercial com os europeus. Nasceu assim a relação diplomática que permitiu sustentar o modelo de comércio de escravos transatlântico. A entrada de outras potências europeias no negócio deu-se muito mais tarde, pois Portugal foi o ponto de ligação entre os dois mundos quase que exclusivamente durante mais de 150 anos, sendo que os primeiros escravos africanos (angolanos) a chegar ao que são hoje os Estados Unidos foram capturados de navios espanhóis e portugueses, aliás o domínio de escravos angolanos na formação das Américas é impressionante como demonstra a pesquisa dos historiadores John Thornton e Linda Heywood.
Successive asiento holders exploited similar connections in Angola and the Spanish Indies. Taking the number of ships licensed to deliver slaves to America for which African ports of call are known – 428 ships in all between 1616 and 1640 – 364 (85 percent) purchased their slaves in Angola. In some years, 1625, 1627-1628, 1630-1632, and 1637-1639, all the ships were from Angola. Even in the intervening years the numbers originating in Angola topped 90 percent; only in 1626 did the number of ships from Angola account for just half. A sample of 274 slaves found in Mexican inventories from 1632 to 1657 show that 86.7 percent derived from West Central Africa ** (tradução abaixo)
in “Central Africans, Atlantic Creoles and the Foundation of the Americas, 1585-1660” (Linda M. Heywood, John K. Thornton)
Como abordei antes, o nome “Congo” é na verdade de origem angolana e os nossos vizinhos (República do Congo e R.D. Congo) viram este nome associado aos seus países apenas no fim do século XIX (pós-fim do comércio transatlântico de escravos) pelo que as referências a “congo” na toponímia e na cultura afro-americana e afro-caribenha vistas ainda hoje, como em Cuba (regla conga) e no Brasil (congada), estão ligadas ao que foi levado por escravos do Reino do Kongo. O nome Congo aparece associado à vários escravos que foram levados daqui para o Brasil, México, Colômbia, Uruguai, Perú, Guatemala, Honduras, Barbados, Bermudas, Porto Rico, Cuba, Estados Unidos, Hispaniola (hoje Haiti e República Dominicana), Venezuela e outros países como é o caso do destacado Louis Congo, que terá nascido em Kakongo (Cabinda) antes de ser levado para Louisiana (Nova França) e lá se ter tornado num oficial de justiça depois da obtenção da liberdade em 1725.
Entre as figuras angolanas que marcaram a nossa história, facilmente destacamos o rei Nzinga Nkuwu, a rainha Njinga Mbandi, o rei Ekwiki ou o jovem soberano Mandume Ya Ndemufayo mas há um número significativo de angolanos e seus descendentes que se destacaram no Novo Mundo como (i) Anthony Johnson um negro que depois de livre veio a tornar-se num empreendedor de sucesso na Virgínia do século XVII e cujo filho chamou de “Angola” às terras que comprou em 1667 na Chesapeake Bay (Virgínia) para homenagear o pai; (ii) Zumbi dos Palmares, que liderou o Quilombo dos Palmares, um refúgio fundado por escravos angolanos no Brasil; (iii) Manuel de Gerrit de Reus e Groot Manuel que na colónia holandesa de Nova Amesterdão (hoje Nova Iorque) foram proprientários das terras hoje ocupadas pelo Washington Square Park em Manhattan (iv) Jemmy que liderou a Revolta de Stono em 1739, uma acção que poderia ter mudado a história do sul dos Estados Unidos se tivesse tido outro desfecho. Contudo, foram milhões de anónimos que apesar da adversidade conseguiram juntar elementos culturais angolanos ao que hoje é a cultura das Américas. Aliás, as demonstrações culturais populares da América do Sul, Caraíbas e América do Norte têm na base os ritmos de África como resumiu um taxista em Salvador: “estiveram cá os portugueses e outros europeus mas a cultura que ficou foi a africana”.
Olhando para Angola em particular, os nossos antepassados deixaram um dialecto na Colômbia, levaram os batuques que deram origem ao samba, levaram espécies e técnicas agrícolas para o outro lado e enriqueceram as línguas de lá com palavras de kikongo, kimbundu e umbundu. O que saiu daqui tornou-se na identidade cultural de outros povos, em particular no Brasil onde o nosso hungu virou berimbau e a puita virou cuíca, assim como a marimba que virou instrumento nacional da Guatemala (e chama-se mesmo marimba como em Angola).
(i) Desenho do Padre Givanni Antonio Cavazzi que retrata a corte de músicos da Rainha Njinga Mbandi. (ii) Fotografia tirada em Angola no princípio do século XX. (iii) Fotografia tirada na Guatemala.
O tranço angolano é tão marcante no Novo Mundo que os nossos nomes estão presentes até hoje nos produtos alimentares como chilli congo que é gindungo cahombo na América Central. Na Martinica e Guadaloupe (terra de Thuram) há uma espécie de feijão que chamam de pois d’Angole e no Haiti chamam pois congo. Nos Barbados existe o fungee/fungi (ou cou-cou) que é uma espécie de funge. A nossa galinha do mato no Brasil é galinha d’Angola. Na Carolina do Sul (EUA), região em que abundavam escravos angolanos, alguns descendentes de africanos formaram os Gullah (nome que especula-se derivar de Angola) povo que chama a ginguba de guber. Na culinária Cajun do sul dos Estados Unidos e nas ilhas das Caraíbas cozinha-se um ensopado com doses generosas de quiabo que chamam de gumbo que em algumas regiões umbundu de Angola quer dizer precisamente quiabo (pronúncias alternativas: ngumbo, ngombo).
A nossa marca está igualmente na toponímia de vários lugares, como a Congo Square no Lousiana (Nova Orleães) no mesmo estado existe uma localidade chamada Angola onde fica uma das mais famosas prisões americanas (Lousiana State Penitentiary); nas cidades “Angola” nos estados americanos de Indiana e Nova Iorque e o Angola Neck no Delaware (EUA); as localidades de Angola no Peru, Colômbia e em diferentes estados do Brasil. O nome Congo marca presença em diferentes estados do Brasil, o mesmo país que tem nome de Luanda marcado no seu mapa assim como o nome de outras terras angolanas como Cabinda que aparece não só no mapa do Brasil como também no da Argentina.
Estes são alguns exemplos de como os angolanos deixaram a sua marca há séculos atrás por este mundo afora, marcas que ainda hoje estão vivas. Pena é a herança cultural dos povos de Angola em território nacional e no mundo não receber a atenção que merece.
* O título deste artigo foi inspirado no título do romance de José Eduardo Agualusa “A Rainha Ginga – E de como os africanos inventaram o mundo”
** [Tradução livre] «Sucessivos titulares de asientos (contrato de exploração comercial) exploraram ligações similares em Angola e nas Antilhas espanholas. Considerando o número de navios licenciados para entregar escravos na América para os quais são conhecidos os portos africanos de origem – 428 navios entre 1616 e 1640 – 364 (85 porcento) compraram os seus escravos em Angola. Em alguns anos, 1625, 1627-1628, 1630-1632, e 1637-1639, todos os navios saíram de Angola. Mesmo nos anos de intervenção o número de [navios] originários de Angola superavam 90%; apenas em 1626 o número de navios com origem em Angola representaram apenas a metade. Uma amostra de 274 escravos encontrada em inventários mexicanos de 1632 a 1657 mostra que 86,7 porcento vieram da África ocidental central.»
( ANGONOMICS
depósito de pensamentos sobre as questões económicas de Angola)
https://angonomics.com/2015/03/28/como-os-angolanos-inventaram-o-mundo/
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