13-12-2015Lampedusa - ANA PAULA TAVARES
“Aprendeste a Domesticar Desertos para Agora te Perderes no Mar”Fala de mãe ‘Me’, a mãe das mães, para os filhos novos. Deixas as mulheres e os filhos, as mães de ontem e de hoje, os amigos e os camelos, só para te perderes no mar. Olha, irmão, o mar não é vermelho nem abre estrada para se poder passar, não tem lagos de sal para atravessar, nem o paraíso reencontrado das palmeiras ou o ouro escondido que sabias procurar. As provas do mar são muitas, meu irmão, e se escutares aprenderás a ouvir as vozes de todos os que se perderam sem chão para repousar e choram para sempre o canto dos possuídos por seres que não conheciam e os proíbem de rir e encontrar o caminho de volta. Olha, irmão, são grandes os caminhos do mar e à sua volta as árvores não têm as lianas da salvação: o mar ar é cova, mortalha, sedução, lugar de todas as forças e da construção da muralha. Ali, dizem, se cria o mare nostrum que devia ser de todos e é só de alguns, e de natureza hostil e faminta dos corpos dos irmãos e da sua vida. Tu, que percorreste os caminhos da vida tão macio que parecias encantado e nada temias, nem sequer a curva dos rios, nem a fronteira das línguas, nem a ida nem a volta. Rotas e mapas como oráculos foram preenchendo os espaços do teu rosto e criando as sombras e a luz da vida futura. As palavras do deserto eram muito tuas conhecidas, com as suas chaves de abrir e fechar portas e as águas escondidas da cidade antiga. Dos lagos salgados sabias o outro lado: espelho da ciência antiga que te fora ensinada pelos senhores da escrita. Sabias abrigar-te das dores de fora e das tempestades do vento, e do sagrado e do profano herdaras a alma para perceber todas as coisas. Vivias a tua vida e os teus sonhos eram partilhados por aqueles que como tu sabiam das travessias. Sabias ser irmão e espalhar as sementes para que na hora certa houvesse figueiras e catos, frutos e sombras, o sorgo da fome e o leite azedo. Rotas precisas da seda, rotas complexas do ouro, passagens de rios grandes e pequenos foram guardadas nos terrenos férteis das tuas mãos. Eras belo, meu irmão, o das sábias palavras, e ninguém podia prever que a tua vida não fosse a vida simples do deserto, da travessia, do sal e do ouro, das rotas da água, rosas de areia, inventário dos dias que andavas a construir. Eras a nossa cegonha branca com as suas asas fortes e pés seguros: ias, mas voltavas sempre com as pedras e o mel silvestre. Nunca te perdeste em lagos encantados, nem cedeste ao canto de criaturas novas. Ias. Voltavas com as mãos prontas para colher da palmeira nova as tâmaras e olhar os filhos nos olhos. Trazias presentes de seda e algodão e óleos da salvação. Ninguém a não ser tu, irmão, podia contar de novo os mitos da criação para nos manter unidos no grupo e no coração e acordados cada dia para saber quem éramos, para onde íamos e de quantos oásis eram feitos os nossos mundos. Agora partiste, irmão, com outros irmãos, para a viagem longa dos donos dos barcos. Não conhecias o mar e ainda assim partiste. Não conhecias o mar, nem o que escondiam suas águas profundas e escuras. Não disseste nada às mães antigas nem às novas. E todos nós sabíamos que a tua ciência não era a dos barcos e nem a do mar. As redes rasgaram-se nas nossas mãos enquanto morrias de fome e de frio diante da muralha da ilha. http://www.redeangola.info/opiniao/aprendeste-a-domesticar-desertos-para-agora-te-perderes-no-mar/ |