Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


30-01-2015

O diabo da Tasmânia e a unidade cultural bantu Francisco Soares



Infelizmente, em países como Angola continua a ser preciso reafirmar uma verdade evidente: não se pode confundir, nem sequer em termos territoriais, o uso de traços culturais (por exemplo relacionados com a solução para o corpo depois da morte) com uma identidade linguística, como se língua e cultura - uma generalização de linguagem e pensamento - fossem uma só e a mesma 'coisa', ou processo, ou fenómeno. Portanto, como se o uso de uma língua implicasse o uso de uma cultura exclusiva dela e, no final, a identidade cultural de uma nação dependesse do uso dessa língua ou desse traço cultural, ignorando-se ainda que os processos identitários são dinâmicos. 

Desta vez o apontamento ocorreu-me ao ler o artigo de Xaverio Ballester, da Universidade de Valência, na revista Elea  (n.º 6, 2004, pp. 107-138), que pode ser lido e transferido aqui »(http://pt.scribd.com/doc/208035573/Hablas-Indoeuropeas-y-Anindoeuropeas-en-La-Hispania-Prerromana-Elea-6-2004-Xaverio-Ballester). 

O artigo intitula-se «Hablas Indoeuropeas y Anindoeuropeas en La Hispania Prerromana». Em determinado ponto o autor depara-se com o mesmo problema que nós aqui: 

"[...] el problema es - de nuevo - el de (la tendencia a) automáticas e sincrónicas tautologías lengua=cultura." 

Não usaria a palavra "tautologias" ali, porque em português ela não tem sentido próprio para o contexto frásico. Mas isso não complica o nosso raciocínio. De resto o autor, em seguida, nos fornece "un par de ejemplos con intención de dar por definitivamente zanjada la cuestión."

O caso que, nesse momento, lhe desperta a procura de exemplos é também um exemplo para nós: a associação gratuita entre a "cultura dos campos de urnas" e os celtas, ou entre a mesma cultura e os ibéricos e respectiva língua. Ora a zona da cultura dos campos de urnas na Península Ibérica não coincide com a área "geográfica y linguística de los celtas [...] las gentes de estos «Campos de Urnas» hablarían ibérico". Três zonas, no Norte da Península, partilham essa cultura: a basca, a aquitana e a íbera ou ibérica. Mas não havia uma mesma língua para essas três zonas. Logo, a conclusão a tirar é a de que a cultura dos "campos de urnas" não corresponde a nenhuma língua em particular. Entretanto, ela é um traço cultural fundamental em três povos e regiões diferentes... 

O primeiro exemplo que Xaverio nos apresenta é suficientemente elucidativo. Passou-se na ilha da Tasmânia, hoje pertencente à Austrália, ficando a cerca de 240 km's a sul da costa australiana. Passo a palavra ao académico espanhol: 
 

"[...] en concreto albergaba unos 2000 aborígenes cuando desembarcaron allá los primeiros europeos, los cuales, por cierto, causaron auténtico pavor en la población, pues al ver a estos ancestros de Nicole Kidman con rostros tan palidos como la luna, creyeron que eran los blanquecinos difuntos de sus tradiciones y supusieron que los muertos volvían para visitarles (Murdock 1981: 25s)".


Este exemplo é muito significativo para nós, porque já ouvimos e lemos o mesmo sobre a chegada dos portugueses a Luanda. E com razão. A conotação da brancura com a morte é comum, derivando talvez da cor dos ossos calcinados ou de outra operação metafórica parecida. Já no princípio do século XVIII, D.ª Beatriz, Kimpa Vita, dizia que, durante as suas 'mortes', ou estadas no céu, era rodeada por crianças brancas. As crianças brancas eram os corpos dos mortos metaforicamente ali representando as almas. 

Apesar dessa conotação, parcialmente comum à Península Ibérica medieval, um traço cultural importante - o destino a dar aos corpos após a morte - é partilhado por povos de fala kimbundu, pelos da Península Ibérica na primeira fase da sua Idade Média e por uma parte dos 'diabos' da Tasmânia que incineravam os corpos. As línguas são bem diferentes, entretanto. Como lembra Untermann, citado por Xaverio: 

"Hoy en día sabemos muy bien que culturas definidas por medio de objetos visibles no coinciden forzosamente con hablantes de una lengua concreta".


O que se passava na Tasmânia é mais esclarecedor que isto: 
 

"Mientras algunas de las tribos orientales de la isla introducían los cadáveres - obviamente en posición vertical y de pie - en las oquedades de los árboles, en el resto de la isla la cremación resultaba mucho más comun, tras la cual cenizas y huesos carbonizados se enterraban (Mudrock 1981: 25). Como otros muchos pueblos, tambíén los aztecas practicaban doble ritual funerario: incineraban a los guerreros muertos en combate, a las mujeres fallecidas en el parto y a los jefes de clan, mientras los borrachos y finados por enfermedades consideradas impuras eran simplemente enterrados". 


Como nota o autor, a situação tem semelhanças com práticas funerárias romanas e com algumas contemporâneas. A dissociação entre práticas funerárias, línguas e culturas identitárias é, portanto, completa. Na própria Tasmânia, falando a mesma língua, em duas zonas diferentes da ilha se processavam costumes funerários diversos. Se usamos a mesma língua e praticamos ritos diversos, também podemos usar os mesmos ritos e praticar em línguas diferentes, como se vê pela comparação histórica. 

A confusão que o autor refuta instalou-se há muito nos estudos 'africanos' militantes. Ela sustenta uma equivalência insustentável entre o uso de línguas bantu, uma pretensa cultura bantu (assim, no singular) e uma pretensa identidade ou resíduo e base estruturante e limitadora bantu. 

Não há uma cultura bantu, como não há uma cultura indo-europeia. Há culturas expressas em línguas bantu e culturas que se expressaram ou expressam em línguas indo-europeias e derivadas. Afirmações tidas como de senso comum em Angola e outros países da África negra, do tipo "a maioria da nossa população é bantu portanto a nossa cultura é bantu e a nossa identidade também" não fazem qualquer sentido - além de perigosamente próximas de posturas nazis, como de resto se viu pela trajectória de Robert Mugabe. 

Em primeiro lugar, uma população definida geneticamente não coincide com uma população definida culturalmente. Ambas, embora a ritmos diferentes, ambas são também mutáveis. 

Em segundo lugar a equivalência entre uma "população", definida geneticamente e o uso de uma língua é muito rara, dando-se em casos de ilhas isoladas ao longo de muitos séculos e nem sempre. 

Ainda mais rara é a equivalência entre uma população definida geneticamente (os 'negros', que apresentam uma diversidade genética superior à dos 'brancos'), uma população definida linguisticamente (todos os povos que falam línguas derivadas de uma língua-mãe bantu) e uma só cultura, pretensamente bantu. 

No entanto, intelectuais, críticos e teóricos que se apresentam à sociedade como sérios e cientificamente bem formados alicerçam nessa abusiva equivalência toda a leitura e a proposta de angolanidade que vendem, simultaneamente aos angolanos e aos estrangeiros - alguns dos quais, aliás, são angolanos...

Não deixa de fazer sentido estudar os traços culturais comuns à maioria dos nossos povos e tradições, como aqueles característicos das nossas minorias. O que não tem sustento é a operação de equivalência que refiro aqui. Naturalmente que, no caldear multissecular de tradições, costumes, línguas e estruturas políticas se foi criando uma rede de elementos simbólicos comuns e, mais importante, uma sintaxe que organiza essa rede. Uma sintaxe fluida, mutante, mas que estabelece conotações próprias entre elementos diversos. 

Esta sintaxe pode ser estudada pelas agregações de imagens em narrativas tradicionais, em provérbios e adivinhas, como também nas metáforas etimológicas e na poesia lírica. Daí o contributo decisivo que os estudos literários podem ter na discussão sobre o estado actual de uma identidade angolana - difusa ainda, muito maleável ainda, mas existente e procurando alguns pontos fixos de concordância ou de consenso. Que a literatura conhece bem. 

Publicado por F. Soares

 

http://arrugamao.blogspot.pt/2015/01/o-diabo-da-tasmania-e-unidade-cultural.html