15-04-2016 Carta aberta: o Arquivo Histórico Ultramarino, a democracia e o conhecimento
Salão Pompeia no Palácio da Ega DR
Em 1931, depois de um debate que se estendeu por mais uma década, foi criado o Arquivo Histórico Colonial, no âmbito do Ministério das Colónias, para “guardar, inventariar e catalogar os documentos que interessem ao estudo e conhecimento da história política, administrativa, missionária, económica e financeira da colonização portuguesa”.
Seria constituído “a) Pelos documentos manuscritos de natureza histórico-colonial actualmente na posse do Ministério das Colónias e suas dependências; b) Pelos documentos de idêntica natureza que existirem nos arquivos dos governos coloniais […]; c) Pela cartografia portuguesa […]; d) Pelos documentos que de futuro derem entrada no Ministério das Colónias, depois de decorrido o período de 10 anos”.
Eram ainda incorporados na nova entidade, sita no antigo Palácio dos Condes da Ega, à Junqueira, os documentos históricos do extinto Conselho Ultramarino (1642-1833), do Arquivo da Marinha, e outros, oriundos das colónias, cujo conjunto formara o denominado “Arquivo de Marinha e Ultramar”, sob a guarda da Biblioteca Nacional de Lisboa desde 1889.
A 1 de Janeiro de 1974, o então denominado Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) foi integrado na Junta de Investigações Científicas do Ultramar (JICU), organismo de coordenação da investigação científica relativa às colónias, dependente do Ministério do Ultramar. Após as descolonizações, o AHU continuou na dependência da JICU, renomeada em 1982 Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT), sob tutela do Ministério da Educação e das Universidades.
O seu objectivo era fazer investigação sobre as regiões tropicais. Não estava, portanto, vocacionado para a salvaguarda, descrição e comunicação de arquivos históricos. Apesar disso, teve também o encargo da conservação de outros relevantíssimos acervos, tais como os da Comissão de Cartografia (1883-1936), das expedições científicas às ex-colónias (1936-1974) e da Comissão Executiva da Junta de Investigações do Ultramar (1936-1974).
Em 2012, a tutela do IICT passou para o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), depois de uma fugaz transição pela Presidência do Conselho de Ministros, a partir do Ministério da Ciência e do Ensino Superior (2009-2011). O MNE, no orçamento de 2014, infligiu enormes cortes ao IICT, comprometendo a sua existência. O ministro dos Negócios Estrangeiros afirmou há semanas no Parlamento que o IICT será integrado na Universidade de Lisboa. A 11 de Março, o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação reuniu com o conselho directivo do IICT, e confirmou a decisão. Quanto ao futuro do AHU, disse apenas estar ainda em estudo.
O AHU é um arquivo de Estado e património nacional
O AHU conserva património arquivístico nacional: documentação produzida e acumulada por órgãos do Estado português no âmbito das actividades relativas à gestão do Império, da América do Sul às ilhas atlânticas, dos territórios na África aos no Índico e no Pacífico. Património arquivístico que deve estar acessível a todos os cidadãos. Dada a sua abrangência, interessa também, directamente, aos países de língua oficial portuguesa, e constitui uma parte importante dos recursos disponíveis para o conhecimento de todo o processo de expansão europeia. Por conseguinte, o AHU é um polo de atracção da comunidade de pesquisadores de todo o mundo, e altamente potenciador da internacionalização da produção científica portuguesa em ciências sociais e humanidades.
O presente momento convida-nos a reflectir sobre a tutela que melhor se adequa à natureza e à missão do AHU. Na Europa, há uma clara e enraizada resposta a essa questão: os “arquivos coloniais” são arquivos de Estado. No Reino Unido, os arquivos administrativos do antigo império integram os Arquivos Nacionais. Em Espanha, integram os Arquivos Estatais, no Ministério de Educação, Cultura e Desporto. Em França, os arquivos do ultramar pertencem ao Serviço interministerial dos Arquivos, da Direcção Geral dos Patrimónios, do Ministério da Cultura e da Comunicação. Nos Países Baixos, os arquivos coloniais integram os Arquivos Nacionais, do Ministério da Educação, Cultura e Ciência. Na Alemanha, encontram-se num polo dos Arquivos Federais. Na Itália, estão no Arquivo Central do Estado, do Ministério dos Bens Culturais.
Uma forma de comemorar o 25 de Abril de 1974, a democracia e o fim do colonialismo é criar condições para que o AHU, integrando os restantes acervos históricos do IICT, tenha os seus fundos integralmente inventariados e abertos à consulta, para o desenvolvimento de trabalhos de investigação e divulgação científica. Isso implica que o AHU passe a ser tutelado pelo sector da administração pública dedicado à Cultura e ao Património, na dependência dos Arquivos Nacionais, onde os seus fundos documentais poderão ser sujeitos a procedimentos técnicos normalizados e internacionalmente sindicáveis.
Defendemos que os documentos ora existentes no Palácio da Ega, assim como aqueles dispersos por todas as outras instalações do IICT, sejam não apenas salvaguardados, mas devidamente tratados, valorizados e disponibilizados para consulta pública, sob a guarda directa do Estado, como ocorre, sem excepção, em toda a Europa.
Lisboa, 19 de Março de 2014.
Subscritores (por ordem alfabética):
1. Acácio José Lopes Catarino, Universidade Federal da Paraíba, Brasil
2. Alexander Keese, Universidade do Porto
3. Alice Santiago Faria, Universidade Nova de Lisboa
4. Amélia Neves Souto, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Moçambique
5. Amélia Polónia, Universidade do Porto
6. Ana Cristina Nogueira da Silva, Universidade Nova de Lisboa
7. Ana Isabel López-Salazar Codes, Universidade Complutense, Madrid, Espanha
8. André Belo, Universidade de Rennes 2, França
9. Ângela Barreto Xavier, Universidade de Lisboa
10. Antônio Carlos Jucá de Sampaio, UFRJ, Brasil
11. Antonio Cesar de Almeida Santos, Universidade Federal do Paraná, Brasil
12. António Costa Pinto, Universidade de Lisboa
13. António Manuel Hespanha, Universidade Nova de Lisboa
14. Bernardo de Vasconcelos e Sousa, Universidade Nova de Lisboa
15. Bruno Feitler, Universidade Federal de São Paulo, Brasil
16. Caio César Boschi, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil
17. Cátia Antunes, Universidade de Leiden, Países Baixos
18. Célia Cristina da Silva Tavares, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Brasil
19. Charlotte de Castelnau L'Estoile, Université de Paris Ouest Nanterre, França
20. Cláudia Castelo, Universidade de Lisboa
21. Conceição Neto, Universidade Agostinho Neto, Luanda, Angola
22. Cristiana Bastos, Universidade de Lisboa
23. Cristina Osswald, Universidade do Porto
24. Diogo Ramada Curto, Universidade Nova de Lisboa
25. Evergton Sales Souza, Universidade Federal da Bahia
26. Fátima Nunes, Universidade de Évora
27. Fernanda Olival, Universidade de Évora
28. Fernando Catroga, Universidade de Coimbra
29. Fidel do Carmo Reis, Universidade Agostinho Neto, Luanda, Angola
30. Filipa Lowndes Vicente, Universidade de Lisboa
31. Francisco Carlos Cosentino, Universidade Federal de Viçosa, Brasil
32. Francisco Bethencourt, King’s College, Londres, Reino Unido
33. Gaetano Sabatini, Università egli Studi Roma Tre, Itália
34. Georgina Silva dos Santos, Universidade Federal Fluminense, Brasil
35. Giuseppe Marcocci, Univ. della Tuscia, Viterbo, Itália
36. Guilherme Pereira das Neves, Universidade Federal Fluminense, Brasil
37. Gustavo Acioli, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Brasil
38. Helder Adegar da Fonseca, Universidade de Évora
39. Helena Pinto Janeiro, Universidade Nova de Lisboa
40. Iris Kantor, Universidade de São Paulo, Brasil
41. Isabel Correia da Silva, Universidade de Lisboa
42. Isabel dos Guimarães Sá, Universidade do Minho
43. Jacqueline Hermann, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
44. João Carlos Garcia, Universidade do Porto
45. João Figueirôa Rêgo, Universidade Nova de Lisboa
46. João José Reis, Universidade Federal da Bahia, Brasil
47. João Luís Lisboa, Universidade Nova de Lisboa
48. João Paulo Oliveira e Costa, Universidade Nova de Lisboa
49. João Sarmento, Universidade do Minho
50. Joaquim Alves Gaspar, Universidade de Lisboa
51. Joaquim Romero Magalhães, Universidade de Coimbra
52. Jorge Flores, Instituto Universitário Europeu, Florença, Itália
53. José Javier Ruiz Ibanez, Universidade de Murcia, Espanha
54. José Pedro Paiva, Universidade de Coimbra
55. José Vicente Serrão, ISCTE-IUL Instituto Universitário de Lisboa
56. Júnia Ferreira Furtado, Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
57. Laura de Mello e Souza, Universidade de São Paulo, Brasil
58. Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
Brasil
59. Luciano Figueiredo, Universidade Federal Fluminense, Brasil
60. Luís Miguel Duarte, Universidade do Porto
61. Luís Miguel Moreira, Universidade do Minho
62. Luiz Mott, Universidade Federal da Bahia, Brasil
63. Lurdes Rosa, Universidade Nova de Lisboa
64. Margarita Rodríguez García, Universidade Nova de Lisboa
65. Maria Cristina Cortez Wissenbach, Universidade de São Paulo, Brasil
66. Maria de Fátima Bonifácio, Universidade de Lisboa
67. Maciel Santos, Universidade do Porto
68. Mafalda Soares da Cunha, Universidade de Évora
69. Marcia Mello, Universidade Federal do Amazonas
70. Maria de Belém Fonseca, Universidade de Évora
71. Maria Fernanda Bicalho, Universidade Federal Fluminense, Brasil
72. Maria João Vaz, ISCTE-IUL Instituto Universitário de Lisboa
73. Maria Regina Celestino de Almeida, Universidade Federal Fluminense, Brasil
74. Michel Cahen, Institut d'études politiques de Bordeaux, França
75. Miguel Jerónimo, Universidade de Lisboa
76. Miguel Metelo de Seixas, Universidade Lusíada
77. Miriam Halpern Pereira, ISCTE-IUL Instituto Universitário de Lisboa
78. Mozart Vergetti de Menezes, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
79. Nuno Camarinhas, Universidade Nova de Lisboa
80. Nuno Domingos, Universidade de Lisboa
81. Nuno Gonçalo Monteiro, Universidade de Lisboa
82. Nuno Grancho, Universidade de Coimbra
83. Nuno Lopes, Universidade de Coimbra
84. Paulo Cesar Possamai, Universidade Federal de Pelotas, Brasil
85. Paulo Fontes, Universidade Católica Portuguesa
86. Paulo Jorge Fernandes, Universidade Nova de Lisboa
87. Paulo Varela Gomes, Universidade de Coimbra
88. Pedro Aires Oliveira, Universidade Nova de Lisboa
89. Pedro Cardim, Universidade Nova de Lisboa
90. Pollyana Mendonça, Universidade Federal do Maranhão, Brasil
91. Renata Malcher Araújo, Universidade do Algarve
92. Renato Franco, Universidade Federal Fluminense, Brasil
93. Rene Pélissier, França
94. Ricardo Roque, Universidade de Lisboa
95. Roberta Stumpf, Universidade Nova de Lisboa
96. Roberto Guedes, Universidade Federal Rural do Rio do Janeiro, Brasil
97. Rodrigo Bentes Monteiro, Universidade Federal Fluminense, Brasil
98. Ronald Raminelli, Universidade Federal Fluminense, Brasil
99. Sérgio Alcides Pereira do Amaral, Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
100. Silvana Roque de Oliveira, Universidade de Alcalá
101. Stuart B. Schwartz, Yale University, EUA
102. Tânia Dias, Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasil
103. Teresa Cruz e Silva, Centro de Estudos Sociais Aquino de Bragança, Maputo,
Moçambique
104. Tiago C. P. dos Reis Miranda, Universidade Nova de Lisboa
105. Valentim Alexandre, Universidade de Lisboa
https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/carta-aberta-o-arquivo-historico-ultramarino-a-democracia-e-o-conhecimento-1629251
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