05-01-2015Os africanos em Portugal: de conversos a escravos
Um anúncio de fuga de escravos num periódico oitocentista carioca, baiano ou pernambucano, muito provavelmente, não provocará nenhum estranhamento nos leitores brasileiros, estudiosos profissionais ou investigadores diletantes da história nacional. No entanto, pode causar surpresa, mesmo no seleto grupo destacado, um anúncio desta natureza num periódico lisboeta setecentista, a exemplo deste que transcrevemos acima. Verdade é que desconhecemos, quase por completo, a história dos africanos e seus descendentes em Portugal. Mas que isso não seja motivo de constrangimento para os brasileiros, pois a própria historiografia portuguesa tem dado passos tímidos e temerosos nesta direção. Segundo Silvia Lara, em Portugal: o tema tem se desenvolvido quase na surdina, intrinsecamente ligado aos debates que cercam a própria história do Império Português. Com efeito, o significado político da escravidão em Portugal e nas "colônias" parece conter um potencial explosivo. (LARA, 2001:307-404)
Nos primeiros séculos de contatos, inúmeros africanos foram levados a Portugal para serem instruídos na fé, na cultura e nas línguas ocidentais. Alguns desembarcaram em Lisboa como homens livres, eram representantes da corte do Mani Congo, embaixadores, parentes da família real. Destes, alguns poucos se tornaram intérpretes (então chamados "línguas"), catequistas e sacerdotes. Um médico alemão que visitou Portugal em 1494
A política de controle da expansão do catolicismo, levada a cabo pelos soberanos do Congo, investiu na formação de um clero africano. Mesmo após a morte de seu filho bispo, o célebre D. Henrique, o Mani Congo D. Afonso I continuou enviando a Lisboa jovens sobrinhos e primos para serem educados no Mosteiro de Santo Elói (BOXER, 1989:16). Por outro lado, o empenho dos soberanos e religiosos portugueses na formação de um clero indígena indica uma postura "mais cordata", tendo em vista o preconceito característico das relações dos europeus com africanos a partir do estabelecimento do comércio escravista em larga escala. Nesse sentido, as categorias de identificação utilizadas nos diferentes períodos revelam sistemas diversos de classificação, organização e, portanto, de percepção do africano. Nos primeiros séculos de contato, os africanos foram primeiro identificados como gentios, ou seja, povos pagãos, seguidores da "lei natural" que viviam, portanto, no erro e na superstição. No movimento de expansão do catolicismo, os gentios eram povos almejados pela catequese missionária (SOARES, 1998: 77,78). Vê-se então que, o proselitismo dos soberanos portugueses estava consonante com o projeto de expansão missionária. Entretanto, à medida que o comércio de escravos africanos fincava raízes no ocidente, a categoria gentio dava lugar a termos mais seculares e, portanto, mais apropriados aos novos interesses mercantis3. Sem a mesma sorte daqueles destinados a serem educados na fé e na religião católica, se é que assim podemos dizer, no decorrer dos séculos XVI a XVIII, milhares de africanos chegaram a Portugal na condição de escravos. Desde 1512, Lisboa foi o único porto do reino onde era permitido o desembarque de cativos. No entanto, efetivamente, até pelo menos a proibição de 1761, Setúbal, Porto e muitas outras cidades portuárias localizadas na região do Algarve receberam grande número de escravos africanos (LAHON, 1999A:32). "A importância que os portos algarvios, como Lagos, tiveram na importação de cativos fez da região uma das que, no conjunto do território português, contavam com maior percentagem de escravos na sua população" (FONSECA, 1996: 153). No século XVI, apesar do exclusivismo de Lisboa, em termos proporcionais, os números da população escrava no Algarve eram semelhantes aos da capital. Cerca de 6.000 escravos representavam algo em torno de 10% da população total da região. (LAHON 1999A: 13). Para o Alentejo, a partir de um significativo número de registros de batismo da cidade de Évora e principais vilas e termos rurais da região, Fonseca sugere um cálculo aproximado da população escrava. Segundo este autor, no período de 1588 a 1600, os escravos representaram 5,44% do total de batizados (FONSECA, 1997:15). Ao norte, a cidade do Porto possuía um movimentado mercado de escravos desde a segunda metade do século XV. Na década de 1540, os escravos chegaram a representar 6% dos batismos realizados na Sé Catedral (SAUNDERS, 1982: 83). Lisboa, "não era só a maior das cidades, mas também a maior das concentrações de escravos em todo Reino". Um recenseamento das paróquias da cidade, realizado nos anos de 1551-52, permite concluir que Lisboa possuía uma população de 9.950 escravos, "isto é, 9,95% ou digamos que 10% da população total da cidade". (SAUNDERS, 1982: 84). Em 1620, os escravos contavam 10.470 num total populacional de 143.000 (LAHON, 1999A:13).
"Por amor de Deus", as Misericórdias enterravam os pobres falecidos, incluindo neste rol os escravos e libertos negros (GUIMARÃES, 2001:116-17). Os livros de sepultamentos da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa confirmam a presença significativa da população negra na cidade no decorrer do século XVIII. Em 1756, a Misericórdia fez o enterro de 1.235 pessoas, entre estes, 16,8% eram pessoas de cor. Na década de 1760, a população negra representa 15% dos defuntos enterrados pela Misericórdia, em alguns períodos chega a representar 17,8 % "e sua participação nunca fica abaixo de 12,7%, como o ocorrido no ano de 1765 (LAHON, 1999A: 50-1). No final do século XVI, havia em Lisboa escravos africanos de várias procedências. Em sua Crônica da Companhia de Jesus em Portugal, o padre Baltazar Teles registra que, no ano de 1567, um padre mestre dos jesuítas em Lisboa organizou um esquema de revezamento para que os escravos pudessem assistir à doutrina pelo menos um domingo a cada mês. Segundo seu esquema:
Esta grande variedade percebida pelos religiosos jesuítas tem uma explicação simples. As vias de abastecimento dos mercados ibéricos foram múltiplas e variáveis de acordo com cada época e conjuntura específica. O volume, bem como as vias de abastecimento do tráfico de escravos para Portugal e Península Ibérica, em geral são ainda pouco conhecidos. Na verdade, isto reflete um grande silêncio no que diz respeito ao tema da escravidão, tratado pela historiografia portuguesa "quase na surdina". O tráfico é apenas uma entre tantas outras interrogações uma vez que, como afirma Lara "infelizmente continuam sendo poucos os estudos empreendidos por portugueses sobre a experiência dos africanos e seus descendentes como cativos, libertos ou livres no reino português" (LARA, 2001:387-404). De um modo geral, as origens geográficas e culturais dos cativos negros em Portugal eram semelhantes às dos escravos embarcados para as Américas. Nos séculos XV e XVI, "os escravos presentes em Lisboa, Algarve, Alentejo e Andaluzia, provinham principalmente de etnias que povoavam as regiões do atual Senegal até a atual Guiné-Bissau". Muitos destes cativos foram identificados na documentação como procedentes de Cabo Verde. Esta "falsa" identificação" decorria do fato de que muitos originários das margens dos rios da Guiné e Senegâmbia, antes de serem vendidos para a metrópole, permaneciam em Cabo Verde por um período mais ou menos longo (LAHON, 2001). Embora a presença dos centro-africanos (congos e angolas) no contingente de cativos enviados para o Reino date do final do século XV, foi somente no final do século XVI e, principalmente, no início do XVII que esses africanos começaram a ser identificados com mais frequência na documentação. A partir de então, "as etnias que pertencem ao grupo lingüístico banto, constituem provavelmente, o maior contingente de escravos introduzidos em Portugal até 1761 " (LAHON, 1999A:38). Nos séculos XVII e XVIII, era comum encontrar-se, entre a população cativa de Lisboa, escravos identificados como minas. Estes povos provenientes da Costa do Ouro, da Costa dos Escravos e do Golfo do Benin começaram a entrar em Portugal no período de intensificação do tráfico baiano com esta região africana (LAHON, 1999A: 71). Trabalhadores escravos de origem africana eram presença marcante nas cidades e vilas mais importantes do reino português. Em Lisboa, os escravos eram responsáveis por variadas tarefas: eram criados, cozinheiros, ferreiros, serralheiros, alfaiates, aguadeiros, caiadores e marítimos; entre as mulheres, destacavam-se as vendedoras ambulantes de tremoços, mexilhões, favas, bolos e outras iguarias, além das lavadeiras, trapeiras, aguadeiras e calhandreiras, entre inúmeras outras atividades. À semelhança do que ocorria na América, igualmente "negra era a mão da limpeza". As negras de canastra, também chamadas calhandreiras, eram responsáveis por um serviço público importantíssimo. "Era o trabalho da remoção dos dejetos humanos (...) conduzindo-os em calhandras levadas sobre o ombro, ou equilibradas na cabeça, para despejo ao mar, na Ribeira" (TINHORÃO, 1997:114). Na Lisboa setecentista, seguindo a tendência de todo o Reino, prevaleciam os pequenos proprietários. Um grande número de senhores e senhoras alugava os serviços de seus cativos. No ano de 1709, as "pretas que vendem milho, arroz e chicharros cozidos ao povo nas escadas do hospital do Rossio" apresentaram ao Rei uma petição. Elas reclamavam das perseguições, maus tratos e espancamentos que vinham sofrendo da parte do corregedor e do alcaide daquele bairro.
A maioria das negras que vendia nas escadas do Hospital do Rossio era do serviço de ganho. Elas reivindicavam o reconhecimento de sua atividade e local de trabalho com base no costume, uma vez que estavam nesta posse, segundo suas próprias palavras, "desde que o mundo era mundo". Algumas negras de ganho conseguiam economizar o bastante para comprar sua alforria, de seus filhos ou outros parentes próximos. Economizar e contribuir para suas irmandades também contava entre as prioridades destas mulheres, assim como de muitos outros escravos e libertos, como veremos mais detalhadamente no artigo "África em Portugal": devoções, irmandades e escravidão no Reino de Portugal, século XVIII .
extrato do artigo "África em Portugal": devoções, irmandades e escravidão no Reino de Portugal, século XVIII de Lucilene Reginaldo
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