Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


30-12-2016

Reformas na Revolução Assim vivem os cubanos - por Renaud Lambert


 

A população cubana sabia que Fidel Castro tinha cedido a presidência do país ao seu irmão Raúl. No dia 22 de Março, descobriu que ele lhe tinha também confiado a direcção do Partido Comunista. E isto desde há cinco anos… O irmão mais novo chega assim ao VI Congresso do partido, previsto para o final de Abril, em situação de impor o seu «pragmatismo» económico.

 

«A principal ameaça que sobre nós pesa não são os canhões americanos, são os feijões. Os que os cubanos não comem.» Estávamos em 1994, numa rara ocasião: o ministro da Defesa, Raúl Castro, dava mostras de discordar do irmão, Fidel [1], que se opunha à liberalização dos mercados agrícolas que viria estimular a produção de alimentos. Ora, depois do colapso do bloco soviético, Cuba vivia as angústias do «período especial»: o produto interno bruto (PIB) tinha caído 35%, os Estados Unidos haviam reforçado o embargo que estrangulava a economia da ilha e a população descobria a subnutrição. O general Raúl Castro não tinha dúvidas: «Se não mudarmos nada, não terei outra alternativa que não seja a de fazer sair os tanques». No final do ano, os mercados livres camponeses eram autorizados.

Dezasseis anos mais tarde, o irmão mais novo substituiu o irmão mais velho na presidência do país [2] e, segundo ele, a ilha «ainda não saiu do período especial» [3]. Em Agosto de 2008, três furacões sucessivos devastam as infra-estruturas: 10 mil milhões de dólares de prejuízos, ou seja, 20% do PIB. Um quarto, a crise financeira internacional, destrói os sectores mais dinâmicos da economia (turismo e níquel, designadamente). Cuba, que já não consegue fazer face aos seus compromissos, congela os bens dos investidores estrangeiros e corta nas importações, mesmo que tal signifique arrefecer ainda um pouco mais a actividade. De novo, os feijões ameaçam: em 2009, a produção agrícola cai 7,3%. Entre 2004 e 2010, a parte da alimentação que provém do estrangeiro aumenta de 50% para 80%.

No dia 18 de Dezembro de 2010, Raúl Castro já não se dirige ao irmão mas à população. Evocando perante a Assembleia Nacional o objectivo do VI Congresso do Partido Comunista Cubano (PCC) – previsto para o final de Abril, catorze anos após o precedente –, promete: «Ou rectificamos a situação, ou já não teremos tempo de escapar ao precipício que se aproxima». Mas rectificar até que ponto?

Chão manchado pela infiltrações de água, paredes rachadas, mobiliário tão cansado quanto um pessoal de segurança reduzido à sua mais simples expressão: a sala onde nos recebe o presidente da Assembleia Nacional, Ricardo Alarcón, não cheira a poder. Há cinquenta anos, contudo, os «rumores» apontavam para que Alarcón fosse um dos dois principais candidatos à sucessão de Fidel Castro: a «sorte» parece ter decidido de outra forma. Talvez isso explique a espontaneidade do nosso interlocutor: «Sim, haverá uma abertura ao mercado, uma abertura ao capitalismo».

Outros já o tinham observado: «construir o socialismo num só país» não é nada fácil. Sobretudo quando o seu mercado interno é reduzido. Estamos então perante uma ruptura no país da revolução? O presidente da Assembleia Nacional não concorda: «Desejamos fazer tudo para salvar o socialismo. Não o “socialismo perfeito”, com o qual toda a gente sonha, mas o socialismo possível em Cuba, nas condições que são as nossas. E depois, sabe, os mecanismos de mercado já existem na sociedade cubana».

George Washington entre os «barbudos»

Centro da cidade de Havana, bairro do Vedado. Com um pequeno cesto vazio debaixo do braço, Miriam sai do seu apartamento, na rua 23. Ao fundo da avenida, à sua esquerda, o Malecón. A avenida de betão, com sete quilómetros de comprimento, transforma o assalto das ondas em pesadas nuvens de gotas de água que fustigam as fachadas da frente de mar, corroídas pelo sal. Um pouco mais longe, sempre no mesmo alinhamento, Key West e a Florida. O outro lado do mundo, a menos de cento e cinquenta quilómetros.

Quando atravessa a rua, mesmo ao pé de um semáforo com sinal vermelho, Miriam não vê crianças esfarrapadas, com a cara imunda, tentarem vender isqueiros, pacotes de bombons ou bilhetes de lotaria a condutores indiferentes. Nenhum cartaz a convida a descobrir a frescura infinita de uma qualquer bebida gasosa – com garantia de «zero calorias» – ou a suavidade intensa de um gel de duche «revolucionário». Excepção regional, Cuba não conhece a mendicidade infantil. Excepção planetária, na ilha não há qualquer painel publicitário.

Mas Miriam não sonha com isso sequer por um instante. Tal como 70% da população, nasceu depois de 1959, data do «triunfo da revolução» – como se diz em Cuba. Este ambiente é o seu. É o único que conhece. Em contrapartida, ela não deixa de reivindicar «as conquistas sociais» de que goza a população. Tudo o que o Estado põe à sua disposição, gratuitamente, e que constitui para ela um direito: educação, saúde, desporto, cultura, trabalho e alimentação, graças à libreta, a caderneta de racionamento alimentar que festejará no próximo ano o seu quinquagésimo aniversário.

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Apego aos sistemas de saúde e de educação

No dia 9 de Fevereiro, os trabalhadores de uma clínica do centro da cidade estão reunidos para discutir os lineamientos, o documento submetido ao congresso. Trinta e duas páginas e duzentas e noventa e uma propostas, algumas das quais condicionam o futuro de todos os cubanos: salários indexados ao mérito, legislação dos «preços de mercado», revisão dos programas sociais. O documento é globalmente aprovado em apenas alguns minutos. Mas os participantes insistem em sublinhar o seu apego aos sistemas de saúde e de educação cubanos. Mudar, sim, mas isso não. O secretário da sessão, responsável pela secção sindical, anota as observações – sem que ninguém saiba verdadeiramente se serão tidas em conta e como.

Contudo, não haverá o risco de que uma reforma arraste uma outra, e depois uma outra, e uma outra, e de que as autoridades cubanas acabem por afirmar que, feitas as contas, se torna necessário «actualizar» as «conquistas sociais» do país? Exemplos históricos que sugerem um tal cenário não faltam, desde a abertura chinesa à reforma dos serviços públicos em França. Alarcón mostra-se tranquilo. Toma como exemplo a Assembleia Nacional, à qual preside: «É absolutamente possível que uma oposição a tais reformas se manifeste e, no caso presente, vote contra». Existiriam, portanto, contrapoderes? Desde a sua criação, em 1976, a Assembleia Nacional nunca registou um único voto contrário a um texto proposto pelo governo…

No dia 10 de Fevereiro de 2011, num desenho na primeira página do Granma, um jovem de boné, encostado a um poste de iluminação, interpela um homem de idade que passa na rua: «Precisa de cambiar, avô?» «Câmbio» refere-se à troca de moeda nacional por outra, mas significa também «mudança». E o «avô» responde: «Claro, filho! É tempo de mudar e de te pôr a trabalhar honestamente!»

Enviado especial RENAUD LAMBERT, jornalista do Monde Diplomatic

 

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http://pt.mondediplo.com/spip.php?article1140