Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


29-12-2014

Quando Jesus, almoçou na Mesquita de Lisboa


Paulo Mendes Pinto e Fernando Catarino

 

Daniel Rocha

Quando Jesus, Isa ibn Maryam, almoçou na Mesquita de Lisboa

29.12.2014 Por Paulo Mendes Pinto e Fernando Catarino

Nem todos os sábados são iguais. Nas tradições abraâmicas, os sábados são mesmo dias especiais. E muito especial e brutalmente diferente foi o sábado, dia 20 deste Dezembro, do ano de 2014, do calendário gregoriano. E refiro a data com este etnocentrismo porque é de notar que o que de mais essencial teve lugar neste sábado foi o facto de uma comunidade religiosa não católica, que se rege por outro calendário, ter comemorado o Natal, abrindo portas e acolhendo muitos carenciados das mais variadas tradições religiosas.

Foi assim este sábado na Mesquita Central de Lisboa, onde muçulmanos acolheram entre portas os Irmãos, vizinhos de bairro, de freguesia, num almoço de Natal destinado a todos os que passam por momentos menos favorecidos.

Nesta comunidade, já há muito que o Sheikh David Munir me habituara a coisas destas. É frequente eu levar alunos de Ciência das Religiões a assistir a uma das prédicas deste líder religioso nesta quadra nada islâmica. Nas sextas-feiras de Dezembro, David Munir fala à sua comunidade da figura de Isa e de sua mãe, Maryam. É sempre um momento único, ir a uma mesquita ouvir falar de Jesus.

Mas não se trata, nestas prédicas, da presumível mais vulgar e simples apropriação de figuras religiosas, como alguns podem pensar. Sim, Jesus é também um Profeta no Corão, por isso, fala-se dele… sim, é um Profeta, mas mais que o “simples” facto de Jesus ser Profeta no Corão, os seus crentes são tratados como Irmãos pela Comunidade Islâmica de Lisboa.

E, regressando ao almoço de sábado, onde toda a liderança daquela comunidade esteve empenhada e presente, no refeitório da mesquita foram servidas umas três centenas de refeições completas, com dois pratos quentes, tudo assente em trabalho voluntário de muçulmanos, mas também no de gente da freguesia, para além de amigos que não quiseram deixar de dar o seu contributo.

A esmagadora parte dos que se sentaram para serem servidos dessa completa refeição, não eram muçulmanos. E não houve uma palavra de afirmação ou de apresentação do Islão. Seguindo a velha máxima de Homero na Ilíada, foi o “banquete onde todos são iguais”.

E os “iguais” eram muito variados. Havia quem, pelo meio da refeição puxasse de telemóveis de última geração. Havia gente bem vestida que não denunciava uma situação de carência longa, mas que era o eco das vulnerabilidades que muitos temos e que nos pode levar um dia a precisar de uma refeição quente, gratuita. E havia, sim, se os havia, os nossos concidadãos que denotavam no rosto, nas vestes, no olhar, a longa pobreza que, possivelmente, vem de gerações. Não é desta crise esse olhar. É da crise em que vivemos há gerações, impossibilitando que quem nasce tenha as mesmas oportunidades, quaisquer que sejam os pais. Isso, sim, é desigualdade: retirar a capacidade de sonhar.

Fui a este almoço com o meu filho, o Gonçalo, oferecendo o nosso trabalho braçal. Tudo estava organizado com um largo grupo de voluntários, essencialmente de jovens e adolescentes, como ele. Vi-o, empolgado, atarefado, compenetrado, mesmo, a distribuir pão. Regressando ao nosso imaginário mediterrânico, tão vindo do Neolítico, esse pão, acabado de fazer ali mesmo, foi o que mais vezes se tornou a servir, se repetiu. Por alguma razão, o pão é o centro dos rituais de partilha, sempre como alimento e com uma imensa carga teológica, tal como a encontramos na visão cristã da vida desse islâmico Isa, filho de Maryam.

Partilhámos tempo, braços, pão e alimento. Partilhámos, sobretudo, o facto de se estar, o facto de dizer “com licença” quando me abeirava de uma idosa para a servir, sabendo que talvez esse gesto nunca lhe tenha sido feito antes. Partilhámos os sorrisos das crianças que já pelas 14h30, depois dos doces devorados, ganharam asas e corriam pelo espaço livre a brincar.

Uma delas, não com mais de 10 anos, deve ter subido ao piso de cima quando o Imam chamou para a oração. Pelo meio de corridas, nos intervalos de “apanhadas”, entre empurrões, dei por ela, atrás de uma coluna, a ensinar a outras duas um gesto acabado de aprender. Ajoelhava-se no chão na máxima atitude de respeito que os muçulmanos usam na oração, dirigindo-se para Meca. Não, não estava a orar. Estava a tomar como seu um gesto que viu fazer a quem a acolhera tão bem. Ser Irmão também é isto, apropriar, repetir, integrar.

A meio da tarde, depois da Junta de Freguesia ter distribuído os cabazes de Natal e de todos terem seguido para suas casas, se as tinham, parámos. Cansados, fomos comer. A meu lado, no tal banquete em que todos somos iguais, ficou um guineense que durante todo o almoço esteve a lavar loiça. E quanta loiça ele lavou! Não trocámos uma palavra; percebi antes que pouco ou nada sabia de português. Mas também não era preciso.

Nesse sábado, na Mesquita Central de Lisboa, todos fomos Irmãos nessa refeição em que todos fomos iguais. Se o Natal, na origem da palavra, é o “nascer”, então nascemos todos um pouco ali, naquele almoço em que Isa, filho de Maryam, foi à mesquita almoçar.

Paulo Mendes Pinto

Director da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona

 

Quando Jesus, Isa ibn Maryam, almoçou na Mesquita de Lisboa