Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


15-06-2015

GLÓRIA DA IDADE MÉDIA: Hierarquia e dignidade na cozinha medieval





Na cozinha (imaginemos aquela cozinha de heróis, com sete fogões gigantescos, que é o único conservado até hoje do que fora o Palácio Ducal de Dijon) está sentado o cozinheiro de plantão numa poltrona, situada entre o fogão e os diversos serviços, da qual pode contemplar a cozinha inteira.

Na mão tem uma grande colher de pau “que lhe serve para duas finalidades: a primeira, experimentar as sopas e os molhos; a segunda, empurrar os serventes da cozinha para as suas obrigações e, se for necessário, bater neles mais de uma vez”.

Em raras ocasiões ‒ quando chegam as primeiras trufas ou o primeiro arenque novo ‒ apresenta-se o cozinheiro para servir pessoalmente, nesse caso levando a tocha na mão.

Para o grave cortesão que no-las descreve (La Marche) todas estas coisas são sacros mistérios, dos quais fala com respeito e com uma espécie de discurso escolástico.

“Quando eu era pajem ‒ diz La Marche ‒ era ainda demasiado jovem para entender questões de precedência e cerimonial”.

La Marche propõe a seus leitores importantes questões de hierarquia e etiqueta, para ter o gosto de resolvê-las com maduro tato:

‒ “Por que assiste o cozinheiro, e não o servente de cozinha à refeição do senhor? De que modo deve ser nomeado o cozinheiro? Quem deve representá-lo em caso de ausência: o 'hatcur' (encarregado dos assados) ou o 'potagier' (encarregado da sopa)?

‒ “A isto respondo: ‒ diz o sábio La Marche
 

Padeiro e aprendiz, Bodleian Library, Oxford
Padeiro e auxiliar. Bodleian Library, Oxford.

‒ Quando na corte de um príncipe deve ser nomeado um cozinheiro, devem ser chamados um depois do outro o “maître d'hôtel”, os “écuyers de cuisine” e todos aqueles que estão empregados na cozinha; e o cozinheiro deve ser nomeado por eleição solene, verificada por cada um, sob juramento. E à segunda questão: nem o “hateur” nem o “potagier” podem representá-lo, mas sim o substituto do cozinheiro, que deve ser nomeado igualmente por eleição.

‒ Por que os “panetiers” ( título honorífico que recebiam os que guardavam e serviam o pão ao rei) e os “escanções” (aquele que punha o vinho na copa e o apresentava ao rei; equivaleria ao copeiro de hoje em dia) ocupam respectivamente o primeiro e segundo lugares, antes que os trinchadores e os cozinheiros?

‒ Porque seus cargos referem-se ao pão e ao vinho, coisas santas, glorificadas pela dignidade do Sacramento”.
 

(Autor: Johan Huizinga, “El Otoño de la Edad Media”, Revista de Occidente, Madrid, 1965, 6ª. Edición.)