09-10-2020 Portugal ignora herança árabe - Sérgio Almeida
Ana Cristina Silva escreveu romance sobre a vida de Al-Mu’Tamid, o rei-poeta quase esquecido pelos portugueses mas idolatrado em várias regiões do globo
Ao sétimo romance, Ana Cristina Silva volta a partir de dados históricos concretos para sondar os elementos intemporais da natureza humana. Em “Crónica do rei-poeta Al-Mu’Tamid” (Editorial Presença), escreve sobre a vida de um soberano que, embora nascido em Portugal, caiu no esquecimento entre os seus, em contraste com o profundo respeito que continua a merecer não só em Espanha como nos países árabes em geral.
Como surgiu o interesse pela vida do rei-poeta Al-Mu’Tamid?
Pela leitura da sua poesia – fabulosa –, que conheci graças à divulgação que Adalberto Alves fez da vida do rei- poeta e da cultura árabe do Al- Andalus.
A pesquisa foi a componente mais difícil do seu trabalho?
Não foi assim tão complexo. Para quem é investigadora na vida profissional e tem pouco tempo, há que ir ao essencial, ou seja, consultar livros sobre a história da península na época, toda a a obra do Adalberto Alves, e “Portugal na Espanha Árabe” de Borges Coelho, porque tem muitos documentos da época. E, naturalmente, um estudo aprofundado da poesia do rei-poeta.
Onde acaba a biografia e começa a ficção no presente livro?
Impus certos limites pelos acontecimentos da época. Isso é necessário ao rigor histórico. Mas é um livro de ficção, na medida em que, a partir da poesia dele, fiz uma reinterpretação das suas posições em relação à política, ao amor, à guerra, etc. Mais do que a ilustração de uma situação histórica, gosto de usar as situações históricas e as suas personagens para abordar o que é intemporal na natureza humana.
Como se explica o desconhecimento em redor de Al-Mu’Tamid?
O principal motivo é uma certa negligência portuguesa em relação ao património cultural e, em particular, à nossa herança árabe. Al-Mu’Tamid nasceu em Beja, foi governador nominal de Silves durante a sua adolescência, mas foi muito mais ”apropriado” pelos espanhóis como sendo uma figura histórica do seu país. Por exemplo, os mil anos da morte do rei em 1995 foram objecto de intensas comemorações em Sevilha. Em Portugal não se ouviu sequer falar do assunto, e, estamos a falar de uma figura que tem poesias inscritas nas célebres “Mil e uma noites” e que, a par de Omar Khyyam, é considerado um dos melhores poetas de sempre da cultura árabe.
Que revelações a surpreenderam mais no decurso da pesquisa?
O que houve foi um desafio. Este é o meu sétimo romance, mas nunca tinha escrito nenhum em que a personagem central fosse um homem. E este não é um homem qualquer, é um árabe, tem um harém, é um guerreiro e um poeta. Conseguir ser plausível neste quadro de referências, numa linguagem que respeite um certo tom específico à cultura árabe e fazê-lo na primeira pessoa, não é muito fácil.
Al-Mu’Tamid era um rei culto e sensível. Era uma excepção ou abundavam monarcas assim?
Ele era sensível, mas muito susceptível a ataques de irascibilidade, o que era aliás também uma características do pai, Al- Mu´tadid. Mas as cortes das taifas árabes eram centros de cultura. Os melhores filósofos, poetas e matemáticos de todo o mundo árabe da época frequentavam a sua corte em Sevilha. Era melhor como protector das artes e poeta do que como homem de estado e político. Desse ponto de vista, pode-se afirmar que conduziu uma política governativa desastrosa.
Que critérios coloca em relevo quando escolhe uma figura histórica sobre a qual deseja escrever?
Tem de me apaixonar. Escrever dá imenso trabalho e exige disciplina. Sobretudo numa época em que os livros duram dois meses nas livrarias. Escrevi sobre Al-Mu´Tamid por várias razões. Interessava-me explorar na personagem o cruzamento entre a sensibilidade artística de poeta e as manobras maquiavélicas associadas às questões do poder. Também me interessava o desafio de explicar como se chega ao ponto de matar o melhor amigo.
Lecciona Psicologia da Comunicação e os seus romances são complexos a este nível. É a marca fundamental do que escreve?
Sim, a par do cuidado com a linguagem. Uso a linguagem ao serviço das personagens e do conflito, ou melhor dos vários tipos de conflitos que são intemporais, relativos ao amor, à guerra e ao poder que atravessam as personagens.
<em>Portugal ignora herança árabe</em>
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