09-12-2014Benvindos à paz fria Carlos FinoCarlos Fino 08/12/2014 10:07 O degelo leste-oeste que se seguiu à queda do Muro de Berlim há muito que ficou para trás, dando lugar a uma crescente desconfiança que, depois da guerra relâmpago da Rússia com a Geórgia, em 2008, e sobretudo com a crise da Ucrânia, em finais do ano passado, se transformou em hostilidade aberta. O primeiro a usar o termo foi Boris Iéltsin. Em dezembro de 1994, comentando as divergências que já então começavam a surgir entre a Rússia e os Estados Unidos, o antigo presidente russo afirmou que depois de ter assistido ao fim da guerra fria, a Europa corria o risco de "entrar numa era de paz fria". Vinte anos volvidos, a previsão parece ter-se confirmado. O degelo leste-oeste que se seguiu à queda do Muro de Berlim há muito que ficou para trás, dando lugar a uma crescente desconfiança que, depois da guerra relâmpago da Rússia com a Geórgia, em 2008, e sobretudo com a crise da Ucrânia, em finais do ano passado, se transformou em hostilidade aberta. Às sanções económicas, tentativas de isolamento diplomático e medidas retaliatórias de parte a parte, têm-se juntado também pressões de ordem militar, com exercícios bélicos e reforço de posições da NATO/OTAN junto às fronteiras da Rússia, a que esta respondeu com exercícios de grande escala, ensaios de armas nucleares e intensificação do patrulhamento estratégico ao longo de todo o perímetro de fronteiras da Aliança Atlântica. Na semana passada, assistimos, de um lado e do outro, à codificação política do novo confronto. Enquanto no Kremlin Vladimir Pútin, no discurso anual sobre o estado da nação, definia os termos da nova política externa, acusando os países ocidentais "seja qual for o pretexto" de quererem minar o crescimento da Rússia, em Washington o Congresso dos EUA aprovava por larga maioria uma resolução altamente condenatória de toda a política de Moscovo, considerada agressiva em relação aos seus vizinhos. No meio do confronto, a União Europeia, embora seguindo globalmente a orientação norte-americana, procura manter algumas pontes de diálogo. Até porque os interesses dos 28 países que a integram estão longe de ser inteiramente coincidentes. Ainda esta semana, apesar das sanções, a Finlândia, por exemplo, não hesitou em assinar um importante acordo de cooperação com a Rússia no domínio da energia nuclear. E o presidente francês, no regresso do Cazaquistão, fez escala em Moscovo para falar com Pútin sobre a Ucrânia. Joga-se assim como que uma partida de xadrez simultânea, em múltiplos tabuleiros, em que o que está em causa, além da partilha de poder e influência, controlo de matérias-primas e acesso a mercados, são também os próprios termos do jogo global – reconhecimento da hegemonia política, ideológica e militar americana, como querem os EUA, ou aceitação de um estatuto de igualdade, como reivindicam a Rússia e a China, entre outros? Gás – acabou a era da entrega a domicílio Quando o jogo no tabuleiro da energia parecia empatado, Pútin surpreendeu ao anunciar que a Rússia desiste de construir o gasoduto do sul (South Stream), projeto destinado a abastecer os países do centro e sul da Europa evitando o trânsito pela instável Ucrânia. Seria o contraponto a sul de um outro gasoduto já existente a norte, que leva o gás da Rússia diretamente para a Alemanha, evitando também o território ucraniano. Tudo estava pronto para avançar, mas Bruxelas queria mudanças no tipo de contrato e pressionou a Bulgária a não autorizar a construção enquanto Moscovo não aceitasse essas alterações. Como a Rússia dava grande importância ao South Stream, quer em termos estritamente económicos quer políticos, esperava-se que Moscovo acabasse por ceder. Mas não foi isso que aconteceu. Pútin tirou da manga uma solução alternativa. Agora, em vez de levar o gás até aos países interessados, como estava previsto através do South Stream – Bulgária, Hungria, Áustria, Itália, Eslovénia, Sérvia, Croácia... - a Rússia chegou a acordo com a Turquia para conduzir o gasoduto até à fronteira desta com a Grécia, onde será construído um hub de distribuição para quem quiser vir ali comprar. Por outras palavras, Moscovo deixa de fazer distribuição ao domicílio, criando com os turcos uma loja comum onde quem estiver interessado terá de vir abastecer-se. Para os europeus, uma alternativa mais cara e complicada. Ao mostrar que tem alternativas e que pode contornar as exigências que lhe são feitas e as sanções que lhe são impostas, Pútin conseguiu transformar em vitória diplomática o que se configurava como uma possível derrota face a Bruxelas. Resta saber se estamos perante uma realidade consistente ou se se trata, - no caso do oleoduto agora acordado com a Turquia como no caso dos oleodutos antes projetados para a China - mais de show off para inglês ver arrumado à pressa por Pútin para extrair dividendos políticos do que alternativas reais ao fornecimento de gás para a Europa. Seja como for, a União Europeia não deixará de aproveitar, por seu turno, para intensificar esforços no sentido de diversificar o abastecimento e diminuir a dependência energética em relação à Rússia. Mas as variantes possíveis, designadamente o gás de xisto norte-americano, levam tempo a montar e são mais caras, pelo que vários países poderão continuar a preferir o gás russo, que é, em qualquer caso, a única alternativa a curto prazo. Por tudo isto, mais do que uma nova guerra fria, o que parece afirmar-se no cenário internacional é, como previu Iéltsin, uma paz fria: à retórica do confronto, seguem-se conversações e entendimentos pontuais ditados pelos interesses económicos e/ou políticos, mas sem que haja um verdadeiro espírito de cooperação. Enquanto se mantiver a disputa sobre as regras de fundo – hegemonia unipolar ou aceitação de novos atores com direitos idênticos - esse é o nome do novo jogo. * Carlos Fino, jornalista português, foi enviado especial e correspondente internacional da RTP - televisão pública portuguesa - em Moscou, Bruxelas e Washington, e correspondente de guerra em diversos conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Albânia, Oriente Médio e Iraque. Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012), cidade onde atualmente reside. http://www.portugaldigital.com.br/opiniao/ver/20090821-benvindos-a-paz-fria |