26-10-2006 Cultura Bantu Nádia S. Chaia
Nádia P. Chaia – Sidewí Maricá, 26 de outubro de 2006 *
Para que se possa falar sobre as heranças que nos foram legadas pelos bantu é necessário, primeiro, que se faça um ligeiro retrato desses povos tão importantes na formação de nossa identidade cultural. Antes de mais, vamos entender o significado da palavra bantu. O radical “ntu”, comum à grande maioria das línguas bantu, significa o início, a união, homem, pessoa humana (os antepassados e ancestrais são “pessoas espirituais”). O prefixo “ba” forma o plural da palavra muntu (pessoa). Portanto, “bantu” é a designação desses povos que possuem uma mesma raiz lingüística e cultural. Em seu livro “Cultura Tradicional Banto”, editado pelo Secretariado Arquidiocesano Pastoral de Luanda, o Pe. Raul Ruíz de Assúa Altuna mostra-nos que um terço da população negro-africana é bantu. A cerca de 4.000 anos, os povos bantu começaram um enorme movimento migratório que durou séculos. “Partiram, segundo indícios mais prováveis, do noroeste da selva equatorial, nos Camarões e Nigéria, e tomaram duas rotas principais para o sul, uma ocidental, depois de atravessar a selva equatorial, outra para este, seguindo o orla desta selva” ( o.c.) As tradições indicam que os bantos originaram-se de clãs de forjadores que conheciam o segredo do ferro. Só conhecendo o ferro e tendo ferramentas como o machado seria possível desbravar tantos e tantos quilômetros de matas durante a migração. O certo é que a África chegou à idade do ferro sem passar pela de bronze, ao contrário do que aconteceu com a Europa. Importante também era a produção rápida e nutritiva de banana e inhame, que lhes ia garantindo a alimentação. Os motivos para o início desse movimento migratório ainda não foram comprovados cientificamente, porém a lenda conta que o povo migrou fugindo da fome e da seca. O que ocasionou o início do culto a Kitembu ou Tembu. É impossível, em sua cultura tradicional, separar a religiosidade do dia-a-dia do negro bantu. Tentar faze-lo seria como que dividi-lo ao meio, uma vez que todo o seu cotidiano era assentado na crença plena de que em paralelo ao mundo visível , palpável, existia o mundo invisível, habitado pelos antepassados e ancestrais, sendo o mundo visível governado pelo invisível. Assim, seguindo uma linha de raciocínio de causa e efeito, para tudo era possível encontrar uma explicação no mundo invisível. Essa explicação poderia ser dada pelos mitos e lendas ou, ainda, pelo sacerdote adivinhador (tata ngombo). Sua religiosidade era o seu modo de vida. “Um dos princípios reguladores da vida em sociedade entre os bantu e, talvez, o mais importante, é o de que aquele que não honra seus ancestrais nem respeita os mais velhos jamais será honrado pelos seus descendentes e, sequer, respeitado pelos seus mais novos – será um pária entre o seu povo” (Pequeno Vocabulário Kimbundu/kikongo/português – Nádia Póvoa Chaia – Sidewí (a publicar)). Quando, no Brasil colônia, Portugal resolveu empregar no trabalho escravo a mão-de-obra negro-africana, os primeiros aportados aqui foram os de origem bantu. Denominados como negros da Guiné, da Costa, Congos, Angolas, Cabindas, Benguelas. Mandingas, Minas e Moçambiques, tiveram como atividade principal, nos séculos XVI e XVII a agricultura, no século XVIII a agricultura e mineração e no século XIX a agricultura e serviços urbanos. Foram espalhados por, praticamente, todo o país. Na música brasileira a influência negro-africana é prontamente reconhecida. O batuque que faz balançar o corpo, o maculelê, o jongo, a congada, o Maracatu, o tambor de crioula, o samba, a capoeira que é dança, é luta, é esporte e, principalmente, um símbolo de resistência, o coco, o calango, a chula e tantos ritmos mais; instrumentos musicais como o ganzá, o berimbau, a cuíca, o ngoma e o quissange são algumas heranças bantu que recebemos. Muitos desses tesouros quase se perderam pelo preconceito com que foram olhados por muito tempo. Hoje, felizmente, os grupos de resistência e preservação cultural estão conseguindo fazer ouvir a sua voz. São como bolsões de pequenas Áfricas que procuram resgatar a memória e as tradições. São merecedores de todo apoio e respeito. Francisco Gomes de Amorim, engenheiro, escritor e artista plástico que viveu por 29 anos em Angola em seu livro “Contos Peregrinos a preto e branco”, p.94, ensina-nos: “Falar da musicalidade de África, sobretudo do ritmo dos negros, é quase pleonasmo! O africano tem o ritmo no corpo, na alma, na vida. Levou com ele essa musicalidade que lhe é congênita para todos os lugares do mundo onde a diáspora os carregou.” Diante de tal colocação, mais não há o que falar sobre a musicalidade que herdamos. Seria redundância.
Como na África a religião tradicional era uma vivência diária, mesmo onde o catolicismo já se fazia presente, aqui, devido à imperiosa necessidade de sobreviver sem perder de todo a sua identidade, o negro, muito sabiamente, transformou em dogmas relifgiosos. Nas religiões tradicionais bantu, segundo Oscar Ribas em “Ilundu – espíritos e ritos angolanos”,...”as almas mantêm seus antigos sentimentos e hábitos, ainda gostando de comer, beber, fumar, copular, divertir-se”. Crença essa incorporada a ritos afro-brasileiros. O bantu acreditava que as almas vão evoluindo até um dia poderem ser espíritos intermediários de Deus, uma vez que Este não interferia diretamente na vida do homem. Qualquer pedido ou agradecimento deveria, sempre, ser feito através de um ancestral. Nas religiões afro-brasileiras denominadas Angola/Congo, os rituais de iniciação absorveram os ritos de passagem tradicionais dos bantu em sua terra natal e os adaptaram, de maneira a preservar o máximo que era possível, dadas as dificuldades encontradas. Na África Ocidental, nos períodos pré-colonial e colonial, a olaria era uma atividade praticada basicamente pelas mulheres. As peças eram todas moldadas e torneadas à mão, com o auxílio de pedaos de madeira e cascas de cabaça. As peças de argila não eram cozidas em fornos e sim cobertas com material combustível e queimadas. Depois de prontas tinham a coloração escura. Diz-nos José Redinha que a cor era adquirida pela utilização de água com vegetais macerados. “Os objetos de argila não eram usados somente para fins práticos do dia-a-adia. A própria argila estava integrada no mundo mágico-religioso das sociedades da África Central Ocidental, como por exemplo em Kabinda, na Lunda e no Muxiko, onde as mulheres grávidas não deviam tocar na argila ou passar em frente ao local de cozedura, pois podiam prejudicar o trabalho.”(Adriano Parreira – Economia e Sociedade em Angola na Época da Rainha Jinga – Século XVII). Embora hoje, aqui no Brasil, as panelas de barro, alguidares, moringas, quartinhas de barro e vasos sejam comprados em lojas especializadas em artigos destinados aos cultos afro-brasileiros, ou mesmo nas cerâmicas à beira das estradas, as esculturas destinadas ao culto são, geralmente, feitas pelas mulheres e também levam, na sua confecção, determinadas ervas maceradas em água. Depois de prontas e deixadas secar por uns dois ou três dias, a exemplo do que ocorre em África, também recebem um produto combustível e são queimadas. Às mulheres grávidas ou menstruadas é vedada a participação na confecção desses objetos de culto. Era na religião que buscavam explicação para todas as coisas da vida. A arte bantu não se destinava somente ao adorno; estava sempre carregada de um cunho místico, de simbolismos.
Conta a lenda que, depois de criar o mundo e todos os seres e coisas necessários ao seu pleno funcionamento, Nzambi Mpungu (ou Nzambi Apungo, Zambi Apongo) recolheu-se à sua aldeia sagrada, cuja entrada situa-se nas colinas de Mpunguandongo, onde existe uma imensa pegada de um homem e de seu cão. A pegada seria de Nzambi que teria pisado na pedra, com seu cão, antes que esta estivesse completamente seca. O Centro de Pré História e Arqueologia do Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT) não confirma a lenda mas comprovou a existência das pegadas e afirmou não terem sido forjadas por mãos humanas. Antigamente, quando caiam os dentes de leite das crianças era comum atira-los para cima do telhado com um versinho que, se não me falha a memória, era assim: “Mourão, mourão Toma este dente E me dá outro são.” Este é um costume que vem de Moçambique. Quando cai um dente de leite de uma criança esta o joga para o alto, no telhado, porque se o dente lhe foi dado por Nzambi, quando cai tem que ser devolvido para que possa receber um novo.
Quem nunca foi, quando criança, chamado de moleque, não recebeu um dengo, um cafuné, não sentiu uma catinga, não comeu angu? Quem nunca viu um marimbondo ou não tem medo de camundongo? Acredito que a herança mais marcante que os bantu nos deixaram esteja na linguagem, no português falado no Brasil sem que, sequer, nos apercebamos disso, tão acostumados estamos com os sons. Muitas das palavras oriundas do kimbundu, kikongo, ngangela, txókue, umbundu, lingala e tantas outras línguas bantu incorporadas ao nosso português já perderam o seu significado inicial. Sendo a língua viva, em constante evolução, é natural que assim tenha acontecido. Outras tantas passaram a ser consideradas chulas por uma questão de puro preconceito com a sua origem. Hoje, dificilmente se conseguiria alterar a conotação que receberam. Para que não nos estendamos demasiadamente, transformando este encontro em algo enfadonho, faremos uma pequena lista de palavras mais usadas no dia-a-dia , com seu significado no português do Brasil e o que significava originalmente. Vejamos:
Vocábulo
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Brasil
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Origem
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Signigicado
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Angu
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Papa de milho que Pode ser doce ou salgada ou, ainda, Sem tempero
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KK.Angu
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Mingau
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Babáu (gir.)
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Acabou-se, fim
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Kb babau
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Foi-se
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Bamba (gir.)
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Famoso, bom no que faz
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kk. bamba
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Rico
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Banzo
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Tristeza
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Kb. Mbanzo
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Pena(sentimento), enrascada
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Bengala
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Bastão de apoio
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kk. bangala kb. Kiabengala
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Bastão torto
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Cacimba
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Poço, reservatório De água
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Kb. Kisimbi ou Kiximbi
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Fonte, nascente
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Cacunda
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Costas, ombros, corcunda
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Kb. Kakunda
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corcova
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Caçula
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O filho mais novo O último filho.
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Kb.kasule
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O mais novo O último filho
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Calango
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Pequeno lagarto Comum em climas temperados a quentes
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Kb. Dikalanga
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lagartixa
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Calundú
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Tristeza, mau humor
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Kb.kalundu
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cemitério
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Cambada (pej.)
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Grupo de pessoas com os mesmos interesses escusos, bando
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Kb. Kamba
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Amigo, camarada
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Camundongo
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Rato de pequeno porte
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Kb. kamundongo
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Observador, o que estuda, esperto
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Candeia
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Lamparina, lâmpada de azeite
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Kb. Kandeia
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lamparina
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Cansanção
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Urtiga
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Kb kasau-sau
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urtiga
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Carimbo
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Peça,em geral de madeira e borracha, para marcação
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Kb kirimbu
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Sinal, marca gravada
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Catana
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Facão usado no corte de cana
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Kb.katana
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foice
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Catinga
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Mau cheiro
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Kb.kk.katinga
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Mau cheiro
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Caxitu
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Nome de um bairro em Maricá
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Kb.kaxitu
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Caça pequena
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Dendê
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Fruto do dendezeiro. Azeite de dendê
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Kb. Ndende
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Fruto da palmeira ndenden. Óleo de palma, óleo de dendê
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Dengo
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Carinho, carícia, maneira delicada de falar
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Kb. Ndenge
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pequeno
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Fubá
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Farinha de milho
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Kb. Fuba
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farinha
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Fundanga
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Pólvora, queimação
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Kb. Fundanga
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Explosivo, pólvora
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Ginga
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Malemolência, maneira de balançar os quadris sem parar, rebolado
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Kb. Jinga
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Incessante. Nome de uma antiga rainha do território de Matamba.
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Maconha
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Canabis Sativa, fumo cujo uso é ilegal, droga
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Kb. Makanha
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Fumo de rolo, folhas de tabaco
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Mandinga
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Feitiço, feitiçaria
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Kb. Mandinga
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Cólera, ira, mau humor
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Marimbondo
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Inseto cuja picada é muito dolorida
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Kb. Marimbondo
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Enxame de zangãos
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Matuto
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Caipira, interiorano
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Kb. Matutu
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camponês
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Minhoca
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Verme cujas fezes (humus) servem de adubo
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Kb. Kinhoka
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Cobra, serpente
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Moleque
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Menino, pessoa brincalhona, s.pej. pessoa irresponsável
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Kb. Muleke
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Jovem, jovial
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Moqueca
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Caldeirada preparada com frutos do mar
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Kb. Mukeka
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ensopado
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Moxila
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Bolsa de duas alças que se leva às costas
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Kb. Muxila
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Saco de viagem, sacola de peregrino
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Quitanda
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Local onde são vendidos legumes, verduras e frutas
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Kb. Kitanda
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mercado
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Quanto mais um povo conhece suas raízes mais se respeita e mais se faz respeitar.
Por fim, quero agradecer à Universidade Severino Sombra pelo espaço cedido, à direção do Colégio Estadual Elisiário Matta pela oportunidade de participar da Semana de Cultura, à Barraca das Letras pelo apoio, enfim, a todos os que de alguma forma contribuíram para a realização desse encontro, que espero tenha sido proveitoso. Grata pela atenção e
Nzambi uzediua etu enioso. (Deus abençoe a todos nós)
Nádia P. Chaia - Sidewí * Palestra realizada a 26.10.2006, na Escola Estual Elisiário Mata, em Maricá, mais uma "conversa informal" com a turma de formação de profesores da escola, mas o encontro também é aberto ao público, para falar um pouquinho das heranças que nos foram legadas pelos bantos.
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