Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


11-11-2015

Mário Bastos O realizador fala sobre o seu documentário sobre a luta pela Dipanda.


 

Ampe Rogério/RA

O aguardado documentário Independência, de Mário Bastos, tem a sua antestreia hoje no Cine Atlântico, concluindo um ciclo iniciado em 2010, no qual centenas de pessoas foram entrevistadas para contarem as suas memórias do processo de luta por um país livre. Derivado do projecto Angola Nos Trilhos da Independência, da Associação Tchiweka de Documentação, Independênciaresume em quase duas horas mais de uma década de batalhas e logra um didáctico e equilibrado retrato da participação das diversas forças políticas que participaram da guerra contra Portugal.

É a primeira longa-metragem a solo de Mário Bastos, que já havia sido um dos realizadores do documentário intercontinental Triângulo, rodado em Angola, Portugal e Brasil. Fez ainda três curtas-metragens de ficção com a produtora da qual faz parte, a Geração 80. Na entrevista a seguir, o cineasta conta um pouco dos bastidores do documentário, revela as suas influências e justifica as escolhas artísticas de Independência. O filme entra em cartaz amanhã no Belas Shopping, em Luanda.

 

O documentário Independência é uma consequência do projecto Angola Nos Trilhos da Independência, da Associação Tchiweka de Documentação. Como foi a sua entrada?

Em 2009, eu e o Jorge Cohen (produtor) havíamos acabado de fazer uma curta,Alambamento, e o Paulo Lara, da Tchiweka, nos contactou para saber que tipo de equipamento era preciso para gravar testemunhos em audiovisual. Ele tinha já na ideia o projecto Angola Nos Trilhos da Independência, mas era uma coisa muito embrionária. Na altura, eu e o Jorge decidimos que em vez de só recomendar o equipamento, poderíamos trabalhar juntos na criação do projecto. E, depois, vimos que seria importante, além de um arquivo audiovisual, termos um documentário para celebrar esses 40 anos de independência, de certa forma uma homenagem às pessoas que participaram da luta.

 

A quantidade de depoimentos, a duração da captação e o número de horas gravadas evidenciam o tamanho do trabalho que vocês tiveram. Qual a parte mais complicada do processo?

Frase Mario Bastos 1Nos primeiros três anos do projecto estive muito envolvido na parte da recolha de testemunhos, mas a dado momento eu e o Jorge achámos que era melhor eu separar-me deste grupo para me concentrar na organização e na estrutura do que poderia ser o documentário. Fiquei durante quase um ano a ver os testemunhos que já havíamos recolhido, a investigar junto à historiadora Conceição Neto e a ver outros documentários e opções possíveis de como contar essa história. Poderíamos fazer um filme mais poético, ou com uma estrutura mais clássica de narrativa, ou um com recriações, por exemplo. Esse foi um período difícil, mais o mais complicado mesmo foi depois quando acabámos o guião, com os depoimentos e transcrições todas feitas, e passamos para a edição. O filme tinha quatro horas de blocos de pessoas a falarem uma atrás da outra, sem imagens de arquivo, sem fotografias, sem nada, e tínhamos de cortar tudo isso. Isso demorou um ano também. Estava a ficar louco, porque eram dias e dias a trabalhar e a não sair do mesmo sítio. Depois tivemos que parar dois meses para conseguir respirar um bocado e voltar com a cabeça fresca. E aí, quando voltei, já a Kamy Lara, até então assistente de realização e directora de fotografia, entrou na equipa de edição para me ajudar a encontrar de forma clara que caminho seguir.

 

E que caminho foi esse?

O filme demorou seis anos para ser concluído

O filme demorou seis anos para ser concluído

A primeira coisa que eu decidi fazer foi ir à procura de documentários à volta do mesmo tema, lutas de libertação, testemunhos, memórias. Lembro do Eduardo Coutinho, vi oPeões, vi Edifício Master. Vi também Patricio Guzmán, o Ken Burns, americano, que é mais clássico. O documentário que me marcou mais foi um que estava nos extras de A Batalha de Chile, de Guzmán, chamado Memória Obstinada. Guzman fê-lo mais de 20 anos depois do assassínio do presidente Salvador Allende, quando volta ao Chile para revisitar alguns personagens que estavam no documentário original, para ver o que se passou com essas pessoas e com a memória a respeito dessa altura da história do país. A partir daí começou a nascer a ideia de a memória ser o fio condutor central de Independência. As pessoas que estão no filme contam a sua própria história, e há um narrador que tem o tom e a perspectiva de quem participou na luta e agora faz uma reflexão – um tom bastante pessoal. Tentei pegar um pouco nesse tema central da memória e o chileno Patricio Guzmán foi uma influência fundamental em Independência.

 

Como chegou ao Kalaf Epalanga como narrador?

Frase Mario Bastos 3Decidimos que o narrador devia ter um tom de quem participou na luta e que hoje faz a tal reflexão. Tentámos vozes mais velhas, mas não conseguimos encontrar locutores com o tempo suficiente e a flexibilidade. Chegámos, num acto de desespero, a mudar o conceito da narração. A ideia do Kalaf já existia, porque tem uma voz bastante grave, o que sempre queríamos. Já que não conseguimos ninguém mais velho, e estávamos na pós-produção em Portugal, onde o Kalaf vive, decidimos tentar. Quando ouvi a voz dele com a imagem bateu certíssimo. Era uma voz com sotaque bastante angolano, grave, e que fazia da história e aquilo que ele estava a ler, algo seu, ou seja, ouves o Kalaf e parece que é alguém que participou na luta. Não interessa muito se é jovem ou velho, porque o Kalaf é alguém que assume essa memória.

 

O filme já foi exibido para pessoas que participaram na luta de todos os partidos e filiações políticas. Como tem lidado com as expectativas das pessoas, especialmente da presença ou tempo dedicado a alguns testemunhos?

O que tirou a pressão sobre nós foi de que já sabíamos que a maior parte das coisas filmadas iria ficar de fora do filme. É o que acontece quando se conta uma história de 13 anos, com mais alguns anos importantes antes e depois, e que rende 600 testemunhos, e isso tudo tem de caber num filme de uma hora e quarenta e cinco minutos. Aceitámos que o filme não tenha tudo, que não seja toda a história, e sim um contributo para a memória da luta. É o filme mais completo possível que se poderia fazer. E as pessoas que têm visto o filme, não importa a geração ou o partido, aceitam o filme e encontram algo com a qual se identificam. Se foi uma pessoa que participou, encontra um reflexo honesto da luta. Uma pessoa mais jovem vê e fica surpresa com as coisas que a geração mais velha fez.

 

"Independência" é a primeira longa-metragem a solo de Mário Bastos

“Independência” é a primeira longa-metragem a solo de Mário Bastos

 

Alguns aspectos que chamam a atenção no filme são o uso das animações e a música.

A estética toda do filme tem essa relação com a procura, com a investigação dos arquivos, dos documentos como eles aparecem, o que também foi um fruto da minha experiência com esses arquivos. As animações, do português Luís Soares, vieram para os momentos em que tínhamos relatos fortes e nenhuma imagem. Achei importante dar um tipo de sensação sobre esses momentos que as pessoas estavam a descrever. Pensamos em recriações com actores, mas seria falso e caro. Tentámos animar fotografias, mas era um recurso que já havia sido utilizado no filme. Lembro de ter visto então a abertura da mini-série norte-americana The Pacific, que utilizava uns grafismos com lápis e animações em alto contraste, e achei interessante ter esse tom na animação, que parece feita à mão. Mais do que mostrar, é uma questão de recriar a sensação do que cada situação representou, como o ataque ao campo de Teixeira de Sousa, a entrada oficial da UNITA na luta armada. É um momento histórico importante, e a animação serviu para se ter uma noção visual do número de mortos e de como foi importante aquele ataque. Já a música foi um dos últimos aspectos a serem fechados. Estava difícil encontrar algum compositor com sensibilidade para cinema e que tivesse conhecimento de música angolana, mas tivemos o encontro perfeito com o Victor Gama. Ele tem uma experiência enorme com música angolana e tem um toque visual, faz canções inspiradas em imagens.

 

Que outros produtos sairão desse projecto?

Frase Mario Bastos 2Há um making of e mais dois filmes para o DVD, um sobre o projecto Angola Nos Trilhos da Independência, onde as pessoas vão ter a oportunidade de ver de onde saiu oIndependência, e um outro feito por uma realizadora cubana, Gretel Marín Palacio, sobre a memória. Ela entrevista a equipa e usa testemunhos de algumas pessoas de locais onde estivemos. Chama-se A Persistente Fragilidade da Memória.  Além disso, a Tchiweka vai organizar a catalogar os testemunhos do Angola Nos Trilhos da Independência para que tudo esteja disponível. A ideia é tornar tudo público.

 

O cinema angolano não é muito prolífico, as produções são muito esparsas. Qual a sua expectativa em relação ao impacto desse filme no cinema nacional?

É importante que não se demore mais seis anos para sair outro filme, ou mesmo dois anos. Seria bom ter um filme no final do próximo ano, não tão grande, obviamente não tão ambicioso, mas um filme. É importante não parar.

 

E quanto à importância do filme para toda a sociedade. Que repercussão espera?

É importante partilharmos essa memória nesses 40 anos. Os espectadores vão ter essa reflexão, porque lutámos e onde chegámos. Alguns dos entrevistados nos disseram que a independência que tivemos não foi só de hino e bandeira, foi por causas maiores. Outros já dizem: “Não foi isso o que combinámos”. Essa reflexão sobre o que aconteceu vai acontecer em cada espectador.

 

Qual o seu próximo projecto?

Uma das coisas que me levaram a entrar nesse projecto foi o facto de que gosto muito de História, apesar de que a minha ideia inicial na escola de cinema era trabalhar com ficção. Vou tentar trabalhar agora com o presente, com temas actuais, em documentário ou ficção. Estamos a viver um momento interessante politicamente e socialmente, e é importante que haja registos disso.

O realizador acredita no poder que o seu filme terá de provocar a reflexão.

O realizador acredita no poder que o seu filme terá de provocar a reflexão.

 

http://www.redeangola.info/especiais/memoria-e-o-fio-condutor-central-de-independencia/