Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


18-07-2019

A memória judaica também vive no Alentejo - Carla B. Ribeiro


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Por Carla B. Ribeiro

Traçámos um triângulo e entrámos pelo Alentejo adentro no pico do Outono para viajar pela história e pela memória de um território que se desenha entre Marvão, Castelo de Vide e Portalegre.

Feche-se os olhos e imagine-se. Uma ponte, milhares de refugiados. Poderia estar a acontecer neste preciso momento em vários pontos do globo. Mas, no concelho de Portalegre, essa imagem tem a força do passado e marca o presente ao chamar a si gentes de todo o mundo a reviver esses dias.

Estava-se no ano da graça de 1492 e a Santa Inquisição impunha a sua vontade em Espanha. Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão encontram aí uma maneira de cimentar o seu poder e impõem a conversão dos judeus ao cristianismo. Há os que, porém, conseguem chegar a Portugal, onde D. João II via na entrada daqueles uma oportunidade de encaixar o capital que tanta falta fazia à coroa. Pelo valor que lhes exigia à entrada, mas também pelos bens expropriados a quem não tinha forma de pagar a maquia estipulada.

Junto à muralha da localidade de Portagem, atravessada pelo rio Sever e que no Verão mais parece estância balnear, Libânio Murteira Reis guia-nos numa viagem pela História, disciplina que lhe é particularmente querida, até porque a leccionou durante anos. Hoje, nos cinquentas, dedica o seu tempo a dar a conhecer o Alentejo nestes passeios que se inserem nos Encontros com a Memória, um dos alicerces que a região a sul do Tejo usa para construir a ideia da campanha 365 Dias de Emoção, lançada este ano e que engloba dezenas de actividades indicadas para todo o ano.

São as palavras de Libânio que nos levam a quase visualizar aqueles dias. Foram milhares os que cruzaram as fronteiras entre 1492 e 1496, acolhidos primeiro por D. João II e, a seguir, acarinhados por D. Manuel I. Hoje, com algumas residências à volta e com o barulho de fundo do ladrar de um cão de guarda, resta apenas os escombros de uma passagem que foi tábua de salvação para tanta gente.

Consegue-se imaginar o rebuliço. Famílias inteiras à espera que chegasse a sua vez, carregando os pertences de uma vida, entre os quais verdadeiros tesouros. Depois a caminhada pela ponte que, diz-se, assenta sobre uma antiga passagem romana, estando a sua execução rodeada de lendas. Um delas conta que foi construída por Satanás em troca das almas do povoado. A condição imposta pelos homens e mulheres, porém, logrou o objectivo de Lúcifer. Este teria de construir a passagem sobre o rio Sever do pôr ao nascer do Sol. Mas Maomé, a quem o povoado dedicava a sua devoção, roubou a última pedra, impedindo que a ponte fosse concluída no prazo estipulado.

Quem a atravessava nos últimos anos do século XV muito provavelmente desconhecia esta estória. Assim como não imaginava que em breve as condições do reino luso iriam mudar tão drasticamente. Enquanto esse dia não chegava, muitos percorreram quilómetros para outras regiões e, muito graças às suas posses, foram conseguindo um lugar entre as classes mais privilegiadas. Mas houve uma larga fatia que ficou por aqui, assentando arraiais nas localidades à volta que ainda hoje evidenciam, quer na arquitectura quer na força das profissões itinerantes de artesãos ou de comerciantes, a forma como a presença judaica influenciou a vida destas povoações alentejanas.

Marvão e o mundo

O Nobel da Literatura José Saramago escreveu, em Viagem a Portugal (1961), que “De Marvão vê-se a terra toda (…)”. A afirmação é, claro, um gigantesco exagero. Mas a verdade é que, mesmo com uma leve névoa a marcar o horizonte, é difícil dizer até onde a nossa vista alcança, obrigando-nos a seguir a indicação do escritor e “do alto da torre de menagem” murmurar respeitosamente “Que grande é o mundo”.

No alto da localidade, o castelo continua a ser um dos pontos mais procurados por quem chega de visita. Mais ainda agora, numa altura em que Marvão volta a empenhar-se na conquista do estatuto de Património Mundial da Humanidade pela UNESCO, depois de, em 2006, ter recuado na sua candidatura em consequência de um parecer negativo do Conselho Mundial de Monumentos e Sítios (Icomos, na sigla original), órgão consultivo da UNESCO que propõe os bens para classificação.

Nesse sentido, a localidade parece viver cada vez mais intensamente a sua história difícil de dissociar da disputa pelas marcações da fronteira entre os reinos de Portugal e de Espanha, fazendo um inteligente uso das escarpas naturais da montanha.

É subindo entre o casario alvo e bem preservado, por ruas íngremes e estreitas, que se pode chegar ao topo. A caminhada, ao longo da qual se observam detalhes arquitectónicos de diferentes épocas, mete respeito. Mas é sempre possível levar o carro até à beira do castelo (há que, porém, ter cuidados redobrados — pelas ruas, de dois sentidos, só passa um carro à vez), junto do qual se destaca um romântico jardim francês que parece destoar do passado bélico da localidade.

Depois de se ocupar o castelo, e compreender a óbvia razão pela qual foi ponto estratégico (e até viajar pela história da tortura em Portugal numa exposição temporária), a visita não tem de obrigatoriamente acabar. Marvão pode parecer pequeno quando observado ao longe, mas há muito por descobrir. Para começar, é imprescindível uma visita ao Museu Municipal, que ocupa a Igreja de Santa Maria, além de uma passagem pela antiga Câmara Municipal onde se pode conhecer o tribunal onde Mouzinho da Silveira foi juiz. Depois é descobrir o artesanato que habita várias lojinhas, os licores que podem ser saboreados um pouco por todo o lado. E, claro, as marcas que a comunidade judaica chegada de terras de Castela deixou ao longo dos anos em que se foi estabelecendo por aqui.

Castelo de Vide, a judia

Tanto na pequena Portagem, como em Marvão ou Portalegre não é difícil encontrar testemunhos físicos do êxodo judaico de Espanha em 1492. Nenhuma, porém, é tão marcante como em Castelo de Vide. Aqui, os judeus não só encontraram abrigo como conseguiram ficar e transformar a vila.

Lado a lado com as muralhas do castelo, numa das encostas, parece nascer um bairro que foi evoluindo até à Fonte da Vila e por onde ainda hoje se podem encontrar artífices e comércio: as duas actividades que, pelas suas características nómadas — “Com tantas perseguições, os judeus adoptaram profissões que consistiam em coisas fáceis de transportar e montar em qualquer parte, aprendendo a não se apegar à terra”, justifica Libânio Reis —, eram mais queridas à comunidade judaica.

D. Manuel I, com o objectivo de desposar a herdeira do trono espanhol, Isabel de Aragão, iniciou uma perseguição aos judeus, entre 1496 e 1498, ainda antes da entrada da Inquisição em Portugal. Mais uma vez muitos conseguiram fugir, enquanto outros assumiam o estatuto de cristãos-novos. Um ano depois, a saída destes do reino era proibida. E inicia-se então um processo para muitos de sobrevivência. Mas nem a perseguição impediu a liberdade religiosa. Nem que fosse às escondidas. Na rua tinham de se comportar como cristãos. Em casa, muitas vezes em compartimentos aos quais apenas se acedia por passagem secreta, continuavam a realizar o seu culto. E, em comum, tinham um espaço, identificado como Sinagoga Medieval e que pode ser visitada numa pequena casa de dois pisos (um subterrâneo) sita entre a Rua da Judiaria e a Rua da Fonte.

É esta parte da história que se pode vivenciar em Castelo de Vide, percorrendo o caminho da Judiaria, bairro de casas pequeninas que ainda hoje mostram traços característicos como as portas ogivais, as marcas dos ofícios respectivos quando se tratava de uma loja ou mesmo, no caso das residências, o sinal de que eram ocupadas por cristãos-novos.

Portalegre, a vistosa

Assim que se atravessam as muralhas do Castelo de Portalegre, cruzando a Porta de Alegrete, percebe-se estar a entrar num mundo diferente. Um mundo que vira as costas ao frenesim estudantil que se observa na Praça da República e vai penetrando cada vez mais num passado cheio de histórias bélicas, mas também de tricas que envolviam nobres e clero. Por isso, nada mais adequado do que concentrar a atenção na Sé Catedral, cuja primeira pedra foi lançada pelo capelão-mor da rainha D. Catarina e primeiro Bispo de Portalegre, D. Julião de Alva. Infelizmente, a fachada revela a passagem do tempo e, em vez do brilho que já teve, o monumento renascentista com detalhes barrocos mostra o seu lado mais cinzento. Mas, mesmo a precisar de um restauro do lado de fora, o seu interior não decepciona, conta Libânio. Além de um interessante conjunto de pinturas maneiristas, destaca-se a colecção de talha dourada assim como os trabalhos em azulejo.

Mas nem só de sangue, intrigas e perseguições se compõe o triângulo Marvão - Castelo de Vide - Portalegre. Na capital de distrito também dão cartas a cor das Tapeçarias de Portalegre e a poesia de José Régio. Lado a lado.

As primeiras descobrem-se no Museu da Tapeçaria de Portalegre Guy Fino, onde é possível compreender a história do pequeníssimo ponto, criado por Manuel do Carmo Peixeiro, que, segundo o museu, “confere a estas tapeçarias (...) uma total fiabilidade na interpretação do desenho”. No entanto, também se pode ir directamente ao presente, visitando a Manufactura de Tapeçarias. Aqui não só é possível observar extraordinários trabalhos que replicam obras de Júlio Pomar, António Charrua, Dacosta ou Cruzeiro Seixas, entre muitos outros, como se pode observar a execução dos mesmos desde que se chegue nas horas de trabalho, ao longo das quais no segundo piso algumas mulheres trabalham teares enormes que vão exibindo apenas uma pequena parte daquilo que se pode ver pendurado pelas paredes.

A escassos metros, a Casa Museu José Régio, onde o poeta residiu ao longo de 34 anos. A casa era, à data, uma pensão onde Régio alugou um quarto na altura em que foi colocado como docente no Liceu Mouzinho da Silveira. Mas, à medida que o professor ia adquirindo objectos de diferentes interesses, o quarto foi-se enchendo. E, assim, alugou outro. E outro. Até se tornar o único hóspede da casa. A colecção, que integra desde objectos de faiança até têxteis, acabaria por ser vendida à Câmara Municipal com a condição desta transformar aquela casa em museu, sendo hoje um dos ex libris da cidade.

É, assim, com as palavras de Régio que nos despedimos do passado e de Portalegre, cidade “Do Alto Alentejo, cercada /De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros (…) / Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória (…)”.

 

http://fugas.publico.pt/Viagens/328035_a-memoria-judaica-tambem-vive-no-alentejo