03-10-2015Era Uma Vez em Angola - Guilherme Valadão
"Era uma Vez em Angola" de Guilherme Valadãopor cascalenses, em 17.07.15
“Era uma Vez em Angola” é o título do primeiro romance de Guilherme Valadão. Publicado recentemente pela Bertrand, esta surpreendente incursão no mundo da ficção transporta-nos ao longo de muitos quilómetros num percurso difícil entre as cidades de Lobito e de Luanda, na Angola dos anos 40.
Com uma linguagem simples e muito acessível, Guilherme Valadão deixa transparecer a profundidade de uma história em que se sentem os laivos de memória de uma vida – da sua vida – num exercício complexo que conjuga a serenidade de quem muito fez e de quem muito faz, com a ingenuidade própria do rapazinho que dá a cara por este enredo original.
Nas páginas de “Era uma Vez em Angola”, que de uma forma quase magnética nos prendem ao destino de um João Botelho ainda muito novo mas já reflectindo os arquétipos mais profundos de um saber ancestral que se vive sem ser necessário aprender, encontramos a emoção própria do desnorte de uma criança que deambula por uma África que nos enche a boca com o pó cru que se levanta com o vento, com as paisagens inesquecíveis que só quem lá esteve sabe descrever e com os sons, sabores e aromas antiquíssimos que acompanham o devir da humanidade que desde sempre ali foi capaz de viver. Quase é possível ouvir, ao virar de cada página, os batuques das comunidades por onde João Botelho passou ou sentir no ar o estrugido do peixe cozinhado tradicionalmente… E a acompanhar a viagem, os laivos omnipresentes dos valores da família, da amizade, do amor e da honestidade profunda, suporte da narrativa onde vamos descobrindo o seu autor e redescobrindo novos ensejos que ajudam a perceber o que é viver.
As memórias que Guilherme Valadão mascara por detrás de uma história comovente, descobrem-se progressivamente à medida que a história vai trazendo à superfície os sinais incontornáveis de um conjunto de sonhos pessoais que ele não tem a capacidade de esconder. Está lá e sente-se a riquíssima experiência de vida do autor, as sólidas e estruturantes vivências da sua família e um laivo de esperança que, mesmo no desânimo, ele deixa transparecer.
Também lá está, naquilo que o autor dá a entender que é uma ponte entre os tempos e as eras, uma mensagem de futuro, transversal à herança que Valadão quer deixar aos seus netos e que neste livro partilha através de uma interessante estratégia que conjuga o passado e o futuro através de um presente que deve ser permanentemente aproveitado e sofregamente entendido como o mais importante de todos os alicerces.
Em suma, “Era uma vez em Angola” transborda de uma África vivida de forma inebriante e seduz pela ligação permanente ao autor e às memórias únicas que se vão descobrindo ao longo do enredo. É uma leitura que envolve quem nunca teve a sorte de ter vivido África e, certamente, que não deixará indiferente quem lá esteve.
«Ao princípio da madrugada de um dia quente daquele mês de Julho, um rapazinho subia, em passada enérgica, a encosta íngreme de um morro da Serra da Kilewa, perto da cidade do Lobito, em Angola. Chamava-se João Botelho e tinha 10 anos, nesse ano de 1948. Seguindo uma trilha paralela à picada utilizada pelos veículos que saíam da cidade em direção a outros pontos a norte e a sul do território, parava frequentemente para olhar para trás, escutando se algum ruído, diferente do que ouvia da mata densa que o rodeava, denunciava a aproximação de qualquer veículo ou de alguém no seu encalço. Perto do alto da picada, parou mais uma vez para retomar o fôlego. Naquele ponto já alto da montanha, desde que iniciara a subida, sentou-se no rebordo de uma rocha que sobressaía da parede de terra vermelha na encosta íngreme. A seus pés estendia-se, até ao mar que a banhava, a cidade do Lobito, pobremente iluminada àquela hora. Vista assim, de longe, parecia maior do que era.»
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