Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


28-08-2014

Última Flor do Lácio - Coma Profundo Elisabeth Camilo


Elisabeth Camilo  
 

Creio, firmemente, que uma das mais terríveis profissões que há, hoje, no mundo, seja a de revisor de textos.  Tomo a iniciativa de afirmar que ser revisor de língua portuguesa falada no Brasil seja mesmo a profissão que mais chagas abre no peito desse profissional.  Sou revisora e posso garantir :  a última flor do lácio, conforme é conhecido o português falado no Brasil, está em coma profundo, com poucas chances de ser revitalizada.

            Chegam em minhas mãos, e, imagino, nas mãos de todos os revisores desse imenso país, textos sofridos, com todos os tipos de enfermidades.  A ideia de que “vale a interpretação da mensagem que se quis transmitir” promoveu danos profundos à proposta de se criarem textos fluidos, ricos, interpretáveis e válidos para alguns objetivos específicos, principalmente aqueles vinculados ao mundo acadêmico.

            Não desejo aqui discutir a validade ou não das pesquisas volumosas sobre a questão do preconceito linguístico e sobre variação linguística.  Preocupa-me, definitivamente, a falta de contexto, de estruturação textual e de adaptação da escrita para propostas especificas. Bem, vamos escrever um bilhete para o amigo – nada há de errado em fazê-lo usando o internetês ou aplicando o padrão popular ou oral.  Todavia, revisar uma dissertação ou uma tese onde o mestrando ou o doutorando escreve como fala, com excessos de gerundismo, repetição de palavras ou com seus derivados ou com expressões condenáveis para esses tipos de texto (exemplo: tipo assim) envergonha qualquer professor de português.

            Percebe-se que o brasileiro lê cada vez menos e, por causa disso, escreve cada vez pior.  Esse cidadão não consegue argumentar, criar diálogos entre autores ou expressar sua própria opinião sobre alguma citação ou dado.  Desconhece que discurso é toda unidade inteligível de texto, o que inclui períodos e parágrafos; em resumo, todo texto tem que ter início, meio e fim.  É tarefa comum ter que ligar para o autor e questioná-lo temas simples como “quem “, “o quê”, “qual”, “onde”, por quê”.   Na linguagem popular, escrevem-se textos “sem pé e sem cabeça”, ou seja, completamente desfigurados.

            Torna-se fácil detectar que quem escreve hoje teve pouca ou nenhuma cultura de leitura, de técnicas de fichamento e de escritura de resenhas, uma vez que o texto considerado bom pode estar contaminado por outra doença, a saber, o plágio.   Alguns textos que normalmente recebemos vêm repletos de citações (pouco senso crítico do autor) ou invadidos pela cópia.

            Por sua vez, bastam-nos apenas alguns minutos de observação e verificaremos que o que ocorre no texto escrito é pior no texto falado, principalmente na voz de autoridades que usam meios de mídia para chegar ao povo.  Se essas autoridades cometem erros de concordância, de regência ou de estilística (como usando expressões com cacofonia e pleonasmos), como poderemos acusar quem teve pouco acesso aos livros de escrever ou falar mal?   Foi assim que ouvi um âncora de famosa rede de televisão falar duas vezes, em uma mesma reportagem, a expressão “elo de ligação”.  Então, se o graduando escreve em seu trabalho de conclusão de curso ou monografia “conclusão final” ou “elo que liga um autor a outro”, ele se espelhou em alguém que ele julgava ser bom em português.   Em outra ocasião, em um importante evento para criação de programas de incentivo à leitura, a autoridade  repetiu por três vezes  o verbo haver ( igual a existir) no plural.

            Mais uma vez afirmo que aqui não julgo a questão do preconceito linguístico.  Preocupa-me, bastante, a deterioração da língua portuguesa a ponto de um dia só podermos contar, como hoje o fazemos ao usar a gramática tradicional, com exemplos dos clássicos, que vão soar como alienígenas para nossas crianças e jovens, que não sabem escrever uma simples carta de solicitação de serviços ou uma argumentação básica sobre uma escolha feita na vida.  Todos sabemos que as línguas evoluem, sofrem mudanças, não são estáveis; todavia, também reconhecemos que, mesmo dentro dessa evolução, algumas estruturas permanecem e se tornam pilares para a escritura de um bom texto ou para o pronunciamento de qualquer opinião.              Concluo reafirmando que a língua portuguesa falada no Brasil está em lastimável estado de conservação, necessitando, com urgência, de atitudes drásticas para sua revitalização, se isso ainda for possível.  O medicamento mais recomendado é o incentivo à leitura e ao letramento para todas as idades. Só reconhecendo estruturas nos textos é que as repetiremos na fala e na escrita.