Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


16-10-2007

Julieta Gandra – Prisioneira de Consciência em 1964


A morte de Julieta Gandra não foi notícia

Julieta Gandra – Prisioneira de Consciência em 1964
Julieta Gandra foi escolhida em 1964 pela Amnistia Internacional como "Prisioneira do Ano", faleceu ontem, dia 8 de Outubro num lar em Lisboa, aos 90 anos. Exercia medicina hospitalar em Luanda quando foi detida no verão de 1959 sob a acusação de "conspirar contra a segurança externa do estado", baseando-se em três acções concretas:
  1. ter doado 500 escudos ao Movimento Popular de Libertação de Angola, M.P.L.A.;
  2. ter convidado para jantar em sua casa um membro do M.P.L.A.;
  3. ter enviado uma outra pessoa vivendo em Angola um sobrescrito contendo papéis do M.P.L.A.;
Julieta Gandra foi ainda acusada de pertencer ao Partido Comunista Português e nunca escondeu o facto de simpatizar com a luta dos angolanos. Julieta foi privada de advogado de defesa, dado que este foi detido em Lisboa quando tentava embarcar para Luanda para a defender em tribunal. Os tais sobrescritos, supostamente por ela enviados, nunca foram apresentados em tribunal e tudo isto sem qualquer relevância no processo. Foi julgada com mais seis presos políticos em Tribunal Militar em Luanda e condenada a 12 meses de prisão. Após vários recursos, de ambas as partes, Julieta Gandra viu a sua pena agravada para 4 anos de prisão maior e medidas de segurança de 6 meses a 3 anos.
A intervenção da AI e a sua insistência em verificar as condições de detenção e saúde da médica portuguesa surtiu efeito, dado que foi libertada após ter sido escolhida como "Prisioneira de Consciência de 1964".
A escolha desta médica portuguesa alertou para a situação de privação de direitos humanos no dito "mundo livre", "porque nenhum outro país ocidental desfigura tanto a face da liberdade tanto quanto Portugal".
(...)
Julieta Gandra foi um dos casos retratados no livro "Uma conspiração de Esperança", editado pela AI e que realçava a vida de oito prisioneiros de consciência de antes e depois do 25 de Abril.
Segundo o relatório de então, "não seria possível encontrar um exemplo mais claro de um ser humano que, dedicando-se a um trabalho pacífico e nunca tendo praticado ou defendido o uso de violência, fora sujeito à brutalidade arbitrária do estado pelas suas opiniões e convicções".
A morte de Julieta Gandra não foi notícia
"Não foi notícia, na comunicação social portuguesas a morte de Julieta Gandra, a médica portuguesa incriminada pela PIDE em 1959 e condenada no primeiro julgamento político do nacionalismo angolano moderno, o chamado "processo dos cinquenta" onde a par de muitas militantes angolanos figuravam alguns portugueses como António Veloso, Calazans Duarte e Julieta Gandra, que foram deportados para cadeias em Portugal, tendo os angolanos sido deportados para Cabo Verde, onde ficaram internados no campo de concentração do Tarrafal que assim reabria as suas portas em 1960, agora para outros presos políticos, os angolanos.

O falecimento de Julieta Gandra não foi notícia para jornais, rádios ou televisões de Portugal. Apenas a SIC passou em rodapé uma breve informação. Outras pessoas, alguma de bem menor envergadura que J.Gandra preencheram o obituário da comunicação social portuguesa.

Nos anos 50 do século XX, Julieta Gandra, ginecologista (especialidade raríssima na Luanda de então) atendia no seu consultório da Baixa as clientes da sociedade colonial, tirando daí os seus proventos, e, nos musseques, atendia em modesto consultório, a preço simbólico, as mulheres desses bairros suburbanos. Simultaneamente participava em actividades do Cine-Clube e da Sociedade Cultural de Angola realizando também actividade política em organização clandestina do nacionalismo angolano. Por isso foi presa pela polícia do regime salazarista, condenada a pesada pena de prisão, internada em cadeias de Portugal. Quer nos interrogatórios da PIDE, quer nas cadeias, portou-se com uma dignidade exemplar. Em 1964 foi considerada a presa do ano pela Amnistia Internacional

Esta breve resenha da vida cívica de Julieta Gandra cabia em qualquer jornal ou bloco informativo de rádio ou televisão mas os profissionais da comunicação social, sem brio nem remorsos, omitem uma curta e última referência a esta médica portuguesa que foi marco na luta pela liberdade da Mulher e dos Povos."

Lisboa, 10 de Outubro de 2007
Adolfo Maria