Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


09-12-2018

O ÊXODO PORTUGUÊS PARA O IMPÉRIO OTOMANO CRISTINA DANGERFIELD-VOGT


O ÊXODO PORTUGUÊS PARA O IMPÉRIO OTOMANO

Segundo o historiador Carsten Wilke, a expulsão de Espanha dos sefarditas foi um dos acontecimentos mais traumatizantes da história judaica até ao Holocausto do séc. XX. Beyazit II, filho de Mehmet II, ordenou que os seus funcionários deixassem entrar os sefarditas no Império Otomano. Cerca de duzentos mil judeus foram assim acolhidos pelo Império, e destes, cem mil fixaram-se na Salónica e em Istambul. É de Beyazit II a célebre frase «O Rei Fernando de Espanha não é sábio como se diz, ele empobrece o seu Reino para enriquecer o nosso». O sultão referia-se à cultura e aos conhecimentos médicos, náuticos, matemáticos, filosóficos, linguísticos que muitos dos sfaradim haviam levado consigo para o império. As comunidades judaicas eram predominantemente urbanas e dividiam-se por países de origem em congregações (kehillah). A kehillah portuguesa era designada por «Portakal» a palavra otomana para Portugal. Em geral, o proselitismo não foi uma parte integrante da política dos otomanos e como tal os judeus puderam conservar a sua fé e rituais. Um século mais tarde, um turista inglês que visitava Istambul, terá afirmado que a capital do Califado teria a maior concentração de judeus do mundo. Nos trezentos anos que se seguiram à expulsão, a prosperidade e a criatividade dos sefarditas, agora súbditos otomanos, rivalizou com a da Idade de Ouro do Judaísmo Hispânico.


CRISTINA DANGERFIELD-VOGT

 

O Fim da Idade de Ouro do Judaísmo Hispânico

 

Em Janeiro de 1492, a tomada de Granada foi a última etapa da Reconquista Cristã na Península Ibérica da qual resultou a expulsão dos últimos mouros do Al-Andalus. Com o fim do Califado na Europa, desapareceu uma sociedade em que muçulmanos, judeus e cristãos viviam lado a lado num espírito de tolerância relativa e anacrónico e cujos piores tempos da intolerância ainda estavam para vir. 

 

O Al-Andalus foi uma sociedade multicultural, mas também a Idade de Ouro do Judaísmo Hispânico. Deixou-nos vários legados: a tradução dos textos clássicos gregos para árabe, evitando assim o seu desaparecimento; a invenção de tecnologia agrícola e náutica; a inovação artesanal, comercial e financeira; descobertas e avanços significativos no campo da medicina e da ciência; na área da filosofia, destaca-se o trabalho daquele que foi considerado o pai do pensamento secular na Europa Ocidental, Abu-al-Walib Muhammad Bin Ahmad Bin Rushd, conhecido por Ibn Rushd, latinizado para Averróis. Nascido em Córdoba e, mais tarde, exilado em Marrocos, deixou-nos uma vasta obra de comentário analítico sobre os textos de Aristóteles. Maimónides foi um médico do Al-Andalus, cuja reputação o levou a leccionar na universidade de Fez e a estar ao serviço do filho de Saladino no Cairo, deixando tratados de teologia e filosofia com uma marca influente de Averróis. As grandes invenções dessa época saíram desse convívio, geralmente pacífico, entre as três grandes religiões do Livro. 

 

Ironicamente seria no palácio mouro, Al-Ḥamrā', ou Alhambra, em cuja construção trabalharam árabes, judeus e cristãos, que viria a ser assinado o documento de perseguição aos judeus, incluindo os muçulmanos. Este conjunto de arquitectura mourisca ficou para a história como testemunho de uma civilização mais avançada: o palácio tinha água canalizada, instalações sanitárias e um sistema de irrigação próprio, ao revés dos palácios medievais europeus da altura, habitados pelos Reis Católicos de Castela e Aragão e de outros da Europa Medieval. O Califado na Europa, que terminava derrotado, tinha sido uma luz de civilização durante a Idade Média europeia. 

 

A intensificação das perseguições aos Judeus, legitimadas pelo Édito assinado no palácio de Alhambra em Maio de 1492, que ordenava a expulsão de todos os judeus de Espanha, até ao fim de Julho desse mesmo ano, e revogava as excepções previstas no Tratado de Granada de 1491, obrigou muitos judeus a abandonar Espanha. Segundo algumas fontes, partiram entre cem mil a duzentos mil judeus de Espanha. Cerca de noventa mil refugiaram-se em Portugal e juntaram-se às comunidades judaicas mais antigas que alguns historiadores afirmam datar do séc. VI d. C. 

 

Mas este refúgio foi seguro por pouco tempo. Em 1496, D. Manuel I ordena a expulsão de todos os judeus e muçulmanos de Portugal, dando cumprimento aos termos do contrato de casamento com Isabel de Aragão impostos pelos Reis Católicos de Espanha. Para obstar ao desastre económico criado pela partida dos Judeus, o rei ordena a conversão geral no ano seguinte, o encerramento das sinagogas, a destruição de todos os livros judaicos, bem como dos cemitérios e a retirada das crianças de catorze anos e a sua entrega a famílias cristãs. 

 

A integração dos judeus convertidos à força foi dificultada pelo ódio popular contra os cristãos-novos, vistos com desconfiança, o que conduziria ao massacre de 1506 e à instauração da Inquisição, em 1536, aprovada por bula papal. A maioria dos judeus conversos continuou a praticar o judaísmo em segredo, sendo designados por marranos, em hebraico, anusim (os violentados), outros conseguiram escapar para o Norte de África e para a Europa Central, juntando-se os últimos ao grupo dos ashquenazim (palavra hebraica que designa os judeus em Terras alemãs). Alguns destes sediaram-se na cidade de Hamburgo formando uma comunidade sefardita com instituições próprias incluindo uma sinagoga, escolas talmúdicas (talmuld torah e yeshivot) e um cemitério que ainda hoje existe, em Altona. O Holocausto destruiu este centro da diáspora judaica portuguesa. O êxodo de Portugal durou cerca de trezentos anos.

 

Terra de Acolhimento – O Império Otomano

 

Um número elevado destes judeus hispânicos, por isso designados sfaradim (Sfarad é Espanha em hebraico), encontraram refúgio no Império Otomano, chegando mesmo o grande Padişah (Sultão em turco) a enviar barcos para os socorrer. Estes Judeus falavam ladino (judeo-espanhol), uma mistura de espanhol antigo com hebraico, e que ainda hoje é falado, com variações, pelas comunidades sefarditas da Turquia e de Israel.

 

Os Judeus do Império Bizantino foram também eles perseguidos, especialmente quando o Cristianismo foi declarado religião oficial por Theodosius 11 (408-450) e os excluiu dos direitos básicos de cidadania e proibiu a construção de novas sinagogas.

 

Assim quando os Otomanos conquistaram Bursa em 1324, encontraram uma população judia muito oprimida que os recebeu como os seus salvadores. O Sultão Orhan conferiu aos judeus da cidade autorização para construírem a sinagoga de Etz Ha-Hayyim (Árvore da Vida).

 

Os Judeus começaram a fugir da Europa para o Império Otomano, no século XIV, da Hungria em 1376, de França, em 1394 e da Sicília, no início do séc. XV.

 

A Idade de Ouro do Judaísmo Otomano

 

Fatih Mehmed conquistou Constantinopla em 1453, tendo não só protegido os judeus que viviam no império e tinham sido minorias oprimidas durante o Império Bizantino, mas também chamado os judeus da Europa ao Império, enviando barcos em seu auxílio. Mandou proclamar que «Quem estiver connosco, que o seu Deus esteja com ele, deixêmo-lo elevar-se a Istambul, o lugar do nosso trono imperial. Deixêmo-lo viver nas melhores terras, cada um debaixo da sua vinha e da sua figueira, com prata e ouro, com riqueza e gado. Deixêmo-lo viver na terra, fazer comércio e tomar a sua posse». O Rabi Yitzhak Tsafarti enviou uma carta às comunidades judaicas da Europa, depois da Queda do Império Bizantino, convidando os judeus a abandonar os tormentos que sofriam às mãos da cristandade e procurar segurança e prosperidade no Império Otomano. 

 

Segundo o historiador Carsten Wilke, a expulsão de Espanha dos sefarditas foi um dos acontecimentos mais traumatizantes da história judaica até ao Holocausto do séc. XX. Beyazit II, filho de Mehmet II, ordenou que os seus funcionários deixassem entrar os sefarditas no Império. Cerca de duzentos mil judeus foram assim acolhidos pelo Império, e destes, cem mil fixaram-se na Salónica e em Istambul. É de Beyazit II a célebre frase «O Rei Fernando de Espanha não é sábio como se diz, ele empobrece o seu Reino para enriquecer o nosso».. O sultão referia-se à cultura e aos conhecimentos médicos, náuticos, matemáticos, filosóficos, linguísticos que muitos dos sfaradim haviam levado consigo para o império.

 

As comunidades judaicas eram predominantemente urbanas e dividiam-se por países de origem em congregações (kehillah). A kehillah portuguesa era designada por «Portakal» a palavra otomana para Portugal. Em geral, o proselitismo não foi uma parte integrante da política dos otomanos e como tal os judeus puderam conservar a sua fé e rituais. Um século mais tarde, um turista inglês que visitava Istambul, terá afirmado que a capital do Califado teria a maior concentração de judeus do mundo.

 

Sefarditas Portugueses na Corte Otomana

 

Nos trezentos anos que se seguiram à expulsão, a prosperidade e a criatividade dos sefarditas, agora súbditos otomanos, rivalizou com a da Idade de Ouro do Judaísmo Hispânico. Quatro cidades do Império Otomano tornaram-se centros da comunidade sefardita; Istambul, Izmir, Safed e Salónica.

 

David e Samuel Ibn Nahmias introduziram a imprensa no Império Otomano, em 1493, quando estabeleceram a primeira imprensa hebraica. A maioria dos médicos da corte otomana eram judeus e vários desempenharam cargos importantes, como Hekim Yacoub, que foi médico pessoal, tesoureiro e conselheiro de Mehmed II, Efraim ben Nissim Ibn Sanchi, português, sucedeu-lhe como médico na corte; Hamon, português, foi médico na corte e Ishak Pasha foi médico de Murat II. Abraham de Castro foi responsável pela Emissão da Moeda no Egipto otomano. O marrano Daniel Fonseca, médico e diplomata, em Istambul, nasceu no Porto. Joseph Nasi, sobrinho de Grácia Nasi Mendes, sefardita português, foi diplomata e o conselheiro pessoalíssimo de Selim II, sendo, mais tarde, nomeado Duque de Naxos, ou seja governador de um grupo de ilhas no Mar Egeu onde eram produzidos vinhos raros para exportação. O matemático e astrónomo, Abraão Bar Samuel Zacut, nasceu em Salamanca e, depois do Édito de Alhambra, refugiou-se em Portugal. Segundo algumas fontes, terá sido astrónomo do Rei D. João II de Portugal e o grande defensor da rota marítima para a Índia, no início do reinado de D. Manuel I. Obrigado a deixar Portugal, refugiou-se na Tunísia e, mais tarde, na Turquia. Grácia Nasi Mendes, banqueira sefardita portuguesa, operando em toda a Europa, salvou milhares de Judeus fretando barcos para os resgatar sob a protecção do Sultão Soleimão. João Rodrigues de Castelo Branco, sefardita português, que foi médico e escritor, dominava várias línguas, e deixou Portugal rumo a Istambul, acompanhado de Grácia Nasi e Joseph Nasi. Decidiu, no entanto, separar-se deles em Ancona, e ficar em Ferrara, chegando a ser médico pessoal do Papa Paulo III. Perseguido procurou refúgio no Império Otomano, na Salónica, onde faleceu no combate à peste. Deixou-nos «As Centúrias», uma importante obra na área da medicina.

 

Em 1840, o Sultão Abdulmecid ordenou por ferman, édito imperial, a propósito da questão do «Libelo de Sangue» que «pelo amor que temos pelos nossos súbditos, não podemos permitir que a nação judaica, cuja inocência do crime alegado é evidente, seja perturbada e atormentada por causa de uma acusação que não tem o mínimo fundamento na verdade».

 

O Sistema das Nações no Império Otomano

 

Istambul foi uma Babel posicionada entre a Europa e a Ásia. Nos seus mercados ouvia-se o otomano, o persa, o árabe, o ladino, o grego, o arménio, o dialecto veneziano, entre muitas outras línguas; nos seus lugares de culto o árabe, o hebraico, o latim, o grego, o arménio e outras. E, apesar de a ordem islâmica distinguir muçulmanos e dhimmis (não-muçulmanos), os Judeus viveram no seio do Império uma liberdade inimaginável na Europa medieval e renascentista. Cabia-lhes o pagamento da djizia, um imposto pago por cabeça (capitação), e aplicado a todos os homens não-muçulmanos.

 

Esta convivência e a liberdade de que gozavam os vários grupos étnico-religiosos só foram possíveis graças a um sistema de governação especial, nessa altura, inexistente na Europa: o sistema dos millet, ou seja, das nações, em que era consagrada a protecção dos direitos das minorias. Estas nações eram comunidades religiosas não-muçulmanas entendidas no sentido que lhes é atribuído pelo Alcorão e não no sentido europeu clássico de «nações». Neste sistema, cada comunidade se autogovernava. As comunidades judaicas regiam-se pela Halakhah (Lei Judaica), tinham os seus tribunais próprios, em sede de direito da família e do direito civil, liberdade de culto, as suas escolas e programas curriculares e educação religiosa e a sua língua própria. O poder administrativo e as instâncias judiciais superiores otomanas, que tinham função tutelar ou de última instância a pedido das partes, apoiavam-se num movimento de codificação, iniciado por Mehmet II, que, numa constante adaptação, conciliava os princípios derivados do direito consuetudinário e os usos e os costumes do sultanato com o direito islâmico. A segurança do Estado e a cobrança dos impostos era da competência da administração otomana. Contudo, havia isenção de alguns impostos para os millet. A diversidade demográfica e populacional do Império exigira um sistema político flexível e pragmático, tornando-se um exemplo de pluralismo religioso pré-moderno.

 

Em 1856 era promulgado o Édito Gülhane que estabelecia o princípio da igualdade de todos os otomanos perante a lei e previa o início do recrutamento militar obrigatório para todos os cidadãos do Império, o que até à data se aplicava apenas aos muçulmanos. Este Édito coincidiu com o desmembramento do Império e a fuga das populações muçulmanas dos Balcãs para o centro do território otomano, o que originou uma mudança demográfica significativa - três quartos da população otomana passara a ser muçulmana. A chegada da Europa de missionários protestantes para converter os cristãos do oriente e os não-cristãos a um Império que, em geral, não tinha forçado as suas minorias à conversão, contribuiu para o agravamento das tensões. Os cristãos otomanos das várias confissões começaram a olhar para os Europeus como os seus salvadores. Um número crescente trabalhava nas concessões (capitulações) que estavam sob jurisdição estrangeira, o que os libertava do imposto per capita aplicado aos não-muçulmanos; o contacto directo com os mercados estrangeiros conferia-lhes uma posição privilegiada em termos económicos e o facto de não serem recrutados para o serviço militar permitia às minorias uma continuidade geracional nas suas relações comerciais com o estrangeiro. As potências estrangeiras aproveitaram este período de desmembramento do Império, de descontentamento da maioria por se sentir lesada nos seus direitos e das tensões crescentes para fomentar a discórdia entre as minorias cristãs e a maioria muçulmana. No início do séc. XX, Istambul era uma cidade repleta de refugiados muçulmanos dos Balcãs, da Crimeia e dos outros territórios que o Império ia perdendo para os países europeus.

 

O relacionamento dos otomanos com as comunidades judaicas caracterizou-se por uma proximidade especial. Particularmente, os judeus sefarditas, fugidos da Inquisição e que nos séculos XVI e XVII rapidamente excederam o número dos judeus “romanos” e dos asquenazes, que através dos seus contactos comerciais na diáspora sefardita e dos seus conhecimentos linguísticos, contribuíram marcadamente para a internacionalização do Império Otomano. As comunidades judaicas continuaram fiéis aos seus sultões e ao império que os protegera. 

 

Sefarditas em Istambul – Uma Dívida de Gratidão

 

Apesar de, a partir de 1948, muitos sefarditas terem partido para Israel, vivem cerca de vinte mil turcos judeus na Turquia. Muitos deles ocupam lugares de destaque no mundo das artes e dos negócios. O Portugal Post foi falar com Izzet Pinto, um turco sefardita, descendente de judeus de Toledo, possivelmente com raízes portuguesas. Izzet Pinto é o CEO da Global Agency, com sede em Istambul, uma empresa distribuidora de formatos e séries televisivas, e que é um importante player no sector a nível mundial no sector. «Em termos mundiais, somos a quinta empresa do sector com o maior crescimento anual e distribuímos para os mercados estrangeiros a série histórica turca «Muhteşem Yüzyıl- («Anos Magníficos») sobre o Sultão Solimão e o seu tempo (1520-1566). Vendemos a série para mais de sessenta países, incluindo a China, a Rússia, a Estónia e a Grécia, e, com trezentos milhões de espectadores por episódio, é um sucesso entre vários outros distribuídos pela nossa empresa» afirmou o empresário. «Também vendemos a série «Mil e Uma Noites» para a América Latina, ao Chile, e um formato de «Naked City» para Portugal. O nosso sucesso internacional é uma forma de expressar gratidão ao nosso país por ter salvo os nossos antepassados» e frisa «nenhum de nós se converteu». Izzet Pinto conta-nos que não aprendeu ladino porque não queria falar turco com sotaque mas que a irmã, os pais e a avó sabem ladino. Os seus antepassados foram expulsos da Península Ibérica no tempo de Beyazit II há mais de quinhentos anos. Estabeleceram-se primeiro em Edirna e, mais tarde, foram para Istambul onde se dedicaram ao comércio dos têxteis. E, não é por acaso, que nos últimos episódios da série, se conta a história verídica da judia portuguesa, Grácia Nasi Mendes, que ajudada pelo seu sobrinho Joseph Nasi, move todas as suas influências em Istambul e aplica a sua fortuna para fretar barcos e salvar muitos judeus sefarditas das perseguições na Europa. Ela fá-lo sem o conhecimento inicial do sultão, que lhe perdoa aquele acto que lhe poderia ter custado a própria vida. Através de uma alegoria, Solimão explica ao seu grande vizir, Ruştem Paşa, que «o mundo em que vivemos é como um jardim repleto de flores diferentes, todas criadas por Allah, e devemos respeitar a Sua vontade». Explicando ao grande público, numa frase simples, a “ratio legis” do imensamente complexo sistema dos millet. Como mais um facto histórico, assinale-se ainda que, em 1556, Solimão exigiu ao Papa Paulo IV a libertação imediata dos marranos de Ancona, declarando-os cidadãos do Império e salvando-os assim de morte certa.

 

O Velho Homem à Beira do Bósforo renasce na Turquia moderna

 

O pluriculturalismo-etnico-religioso dos millet caracterizou de forma marcante o quotidiano do Império Otomano, tendo também muitos judeus asquenazes, fugidos dos progroms do Leste da Europa, encontrado refúgio junto dos otomanos e, mais tarde, no período do Holocausto, na República Turca. Esta tradição de tolerância perdura na Turquia moderna e Istambul continua a ser a cidade das várias nações, embora de forma menos acentuada do que nos tempos gloriosos do Império por razões que se prendem com a sua história do século passado. As tensões geradas pela política dos países europeus, que, nos finais do século XIX e princípios do século XX, pretendiam repartir entre si o moribundo Império Otomano, resultaram em motins e, por fim, numa guerra para defender a independência do país. Os direitos das minorias deram, muitas vezes, precedência, ao ideal unificador e redutor dos seus direitos, numa situação de força maior gerada pela necessidade de salvar a nação turca do seu desmembramento total. O conflito foi sangrento, dele resultando muitos mortos e muitos sem país e, tendo terminado com a deportação de milhares de turcos muçulmanos dos territórios perdidos e de muitos membros das nações para os novos países. Ainda que diminuída, a Turquia salvou-se pela mão de Ata Türk, o general que criou o país moderno e secular surgido das ruínas do imenso Império Otomano. O xadrez colonial criado pelos aliados, que procuravam matérias-primas e domínios estratégicos e comerciais na região, resultou em desequilíbrios gravosos que ainda hoje se fazem sentir. Mas a vida das comunidades judaicas continuou na moderna Turquia. Actualmente, em Istambul, dez sinagogas recebem os seus fiéis e o jornal Şalom publicado em turco com alguns artigos em judeo-espanhol, informa turcos sefarditas e asquenazes sobre os mais variados assuntos.

 

Para a História passou uma bonita estória sobre mais um milagre na história judaica: os judeus espanhóis e portugueses encontraram um porto de abrigo no mais poderoso império muçulmano, dos finais do séc. XV e no séc. XVI, que foi também o novo Califado; no Império dos Sultões foi-lhes permitido crescer e desenvolver-se, desempenhando todas as profissões, salvo as não permitidas também às outras nações. Como comunidade minoritária, os judeus otomanos gozaram da protecção dos seus direitos ao abrigo de um sistema político que lhes permitia sobreviver enquanto, ao mesmo tempo na Europa, eram ostracizados, perseguidos, torturados e assassinados. Durante o holocausto do séc. XX continuaram a salvo no país renascido do Império que fora porto de abrigo quinhentos anos antes.

 

«Quem salvar uma vida, salva toda a humanidade» é uma frase comum ao Talmude, Sanhedrin 37ª, e ao Alcorão Maide 5.32, que faz toda a justiça aos otomanos e ilustra a aliança entre as duas religiões do Livro.

 

copyright © Cristina Dangerfield-Vogt

consultoria histórica sobre Portugal – Cíntia Maurício

revisão literária – Isabel Andrade 

Fonte: Portugal Post O Êxodo Português para o Império Otomano

 

 

 

 

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