Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


22-06-2014

UMA MOAMBADA A PRECEITO Inácio Rebelo de Andrade


 «Victor Gonçalves previra bem: a moambada estava no ponto» UMA MOAMBADA A PRECEITO Inácio Rebelo de Andrade     Foi talvez Victor Gonçalves quem teve a ideia. E se escrevesse ao José Maximino, que vinha a Portugal de licença graciosa, encomendando dois ou três quilos de farinha de mandioca e uma garrafa de óleo de palma para se cozinhar em casa uma moambada?     Maria do Socorro discordou:     — Oh, Victor, tu tens cada uma!... Uma moambada aqui?! Vais maçar o homem por uma esquisitice dessas? Tem juízo!     Abel apoiou logo o sogro. Que achava muito bem, que a sugestão era brilhante:     — Muito bem pensado.     Punha uma condição: que esse tal amigo trouxesse ainda farinha de milho, de modo a haver funge para os que eram de Luanda e pirão para os que eram do Andulo.     Se foi bem pensado, foi também bem executado. José Maximino chegou a Lisboa munido da encomenda, que entregou nesse mesmo dia ao destinatário. Ele e a mulher, Filomena de Jesus, foram logo convidados para o repasto que se iria preparar.     Maria do Socorro encarregou-se de dirigir pessoalmente a confeção do prato. Correu as mercearias mais próximas, foi mesmo ao mercado da Ribeira, mas regressou de lá desiludida, por não ter encontrado alguns produtos que considerava indispensáveis.     Queixou-se a Victor Gonçalves:     — Sem quiabos nem rama de batata-doce, como poderei dar conta do recado?     Ele conhecia de cor estas desculpas. A mulher continuava com a mania de avisar sempre que as refeições de que se encarregava nunca ficariam a contento. «Nada de especial», como dizia. Mas no fim, quando todos estavam à mesa, já servido e provado o manjar, eram elogios uns atrás dos outros. Que aquilo estava delicioso!, era de lamber os lábios!, que não podia estar melhor!     Ela agradecia, confirmando pela enésima vez que se enganara. Felizmente...     No sábado aprazado para o almoço, de avental e mangas arregaçadas, foi pois para a cozinha. Comprara de véspera duas galinhas de campo, cortadas por Florinda aos pedaços, que temperara convenientemente e guardara no frigorífico numa taça enorme de plástico. Três panelas no fogão: uma para a carne, outra para o funge, outra para o pirão. Esclareceu a criada de que estes últimos deveriam ser feitos mesmo na hora, depois de bebidos os aperitivos, quando se estava quase, quase a ir para a mesa.     — Se não, arrefecem, perdem o sabor e ficam rijos.     Para a sobremesa, fora ao «Bento da Maia» tirar a receita de um pudim de ovos, que saía sempre bem e regalava até o paladar mais exigente.     O casal convidado chegou cedo. Vinha vestido à estação: ele de camisa de manga curta, ela de saia de linho e blusa de seda, porque aquela manhã de agosto prometia aquecer     Maximino parecia ter esquecido já como o calor apertava em Portugal nesse mês:     — Pior do que em Luanda! A tarde de ontem foi um inferno. Confesso que não estava nada à espera de encontrar esta brasa. ***      Victor Gonçalves previra bem: a moambada estava no ponto.     Virou-se para Maria do Socorro e piscou-lhe o olho; do topo da mesa, abriu-lhe um sorriso ao mesmo tempo de satisfação e vaidade, repetindo o que dizia invariavelmente naquelas ocasiões:     — Desta vez, saíste-te!     Maximino concordava inteiramente:     — Nem em Angola comi coisa tão saborosa. De chorar por mais!     Maria do Socorro agradeceu. Achava que todos exageravam, que aquelas felicitações eram a amizade a falar:     — Come-se. Lá isso, é verdade...     Abel interrompeu:     — Qual come-se qual quê! Devora-se!     O que correspondia inteiramente à verdade. Servira-se já três vezes, acompanhando tudo com vinho tinto do Douro, que ele próprio fora comprar numa mercearia de Campo de Ourique e levara à conta de «multa».     — Devora-se!     Sentia-se bem: as papilas consoladas, a barriga aconchegada, o corpo lasso.     — Com estas doses, vou ficar horas a esmoer o que empanzinei. Como uma jiboia atestada...Inácio Rebelo de Andradedo romance «O Pecado Maior de Abel»http://olhoatento.blogs.sapo.pt/reeditando-29-50198