Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


01-06-2014

Glossário portuga para brasucas II & Uma história quase trágica


Apresenta-se aqui a segunda e última parte do Glossário portuga para brasucas, seguido de uma minificção em que, para efeitos práticos e de estudo, se usam as entradas do glossárioHugo Gonçalves

mailBezana, cadela, cabra, narsa, piela, estar com os copos, tosga, torta, carraspana, borracheira, virar o boneco - Bebedeira, porre, pileque.Chamava-lhe um figo - Designa apreciação de alguma coisa, demonstra desejo. Usado com cariz sexual. Exemplo:- O que é que achas daquela atriz da novela das oito?- Chamava-lhe um figo.     Dar uma volta ao Bilhar Grande - Frase que sugere, ao interlocutor, um castigo sob a forma de passeio em redor de um lugar imaginário - o Bilhar Grande. Usado na sequência de uma afirmação descabida ou diante de alguém que, por alguma razão, gostaríamos de ver longe.  Exemplo:- O senhor quer contribuir dinheiro para a campanha de Anthony Garotinho (ex governador do Rio que, após uma administração danosa e uma condenação por formação de quadrilha, vai muito bem nas sondagens)?"- E se fosses dar uma volta ao bilhar grande?Vai chatear o Camões - O mesmo que "vai dar uma volta ao Bilhar Grande", mas aplicado especialmente a pessoas chatas. Talvez a expressão tenha a sua origem na obrigatoriedade enfastiante de estudar "Os Lusíadas", na escola, numa idade em que versos, estrofes e cantos não têm o apelo do decote da colega ou do joguinho eletrónico. Pelo seu legado de aborrecimento, Camões teria assim de ser chateado eternamente por todos os chatos.  Montou-se ali um 31 - Instalou-se uma confusão, um sururu, uma altercação.Fazer 30 por uma linha - Revela um comportamento exagerado e muitas vezes fora da lei ou da moral vigente. Exemplo: ele fumou todas, bebeu todas e roubou um cavalo da polícia. Fez trinta por uma linha.Às duas por três - Marca uma mudança na narrativa, uma reviravolta ou um avanço. Exemplo: "Eu estava quieto, não disse nada, mas às duas por três ela saltou-me à boca".'Tás aqui, 'tás ali - Expressão de desagrado e ameaça que indica a possibilidade de o interlocutor - por ser estúpido, desagradável ou inoportuno - se movimentar do seu estado atual para um estado menos agradável, que pode incluir violência física. Exemplo:- Ó Pires, como é que está a tua mulher e os meus filhos?- 'Tás aqui, 'tás ali.Nem o pai morre nem a gente almoça  - Indica impaciência perante uma espera. Não consegui apurar de que forma a morte do pai seria uma condição para que a gente pudesse almoçar. Uma coisa é certa, o português é muito amigo de uma expressão idiomática com comida (especialmente peixe, ver a primeira parte do Glossário ). Foi pró maneta - Usado quando algo se parte ou deixa de funcionar. Confesso que, desde criança, esta é uma das expressões que mais me fascina. A bola de futebol está furada? Foi pró maneta. O carro capotou? Foi pró maneta. Cheguei a imaginar o maneta como guardião de um planeta de ferro velho onde cabiam todos os trastes estropiados da história, um tipo altamente habilidoso, capaz de consertar tudo o que lhe chegava à mão....Uma história quase trágicaNo íngreme e popular bairro da Pena, em Lisboa, no ano de 1973, teve lugar a contenda entre um Manuel e um Joaquim. E tudo por causa de uma Maria.Joaquim era um carapau de corrida, brilhantina na melena, calça vincada, bigodinho encerado numa cara de galã; as meninas do Campo Mártires da Pátria suspiravam quando ele passava e, se pudessem e as deixassem, chamar-lhe-iam um figo. Empreendedor de múltiplos negócios, que nunca arrancavam, pedia amiúde dinheiro a amigos e familiares. E se alguém lhe sugeria um emprego fixo, por contra de outrem, ele respondia sempre: "Não trabalho para aquecer."Manuel era mais brutamontes. Tinha um progenitor abastado, mas começara por baixo, como mandava a ética paternal. Carregava e descarregava camionetas o dia inteiro. Cada tostão ganho saía-lhe do pelo. Manuel era rijo e calado. Já Joaquim tinha modos polidos e era conhecido por arrotar postas de pescadas sobre qualquer assunto, ostentando o seu alegado saber enciclopédico com a mesma jactância com que acariciava o bigode.Maria, disputada pelos dois durante quase um ano, era, sem dúvida, a miúda mais gira do triângulo Pena - Mouraria - Alfama, embora se mostrasse sempre fleumática e inacessível, passeando nos bailes a sua atitude de "vão todos chatear o Camões", enquanto a rapaziada do bairro, bem menos sofisticada, não ia além de outro pensamento que não fosse saltar-lhe à espinha.Nos santos populares de 1973, o bailarico do Beco dos Birbantes foi interrompido pelo que muitos consideravam, naquele momento, ser o duelo da década. Manuel metia respeito a todos. Joaquim encantava. Os rapazes faziam apostas sobre quem ganharia o combate. Manuel, com uma piela de sangria e dentes manchados, fez-se ouvir bem alto por entre uma das canções do conjunto de baile. "Ó tu que fumas." Em cima do palco, apoderara-se do microfone da banda. E quando a música parou, todos ouviram. "Sim, tu aí, ó bigodes. Tu ´tás aqui ´tás ali, ouviste?"Joaquim sabia que a audiência esperava que alguém levasse na boca para animar a festa. Mas também sabia que mandar Manuel ao tapete era como meter o Rossio na rua da Betesga. Adiaria o confronto o mais que pudesse. Enquanto pau ia e vinha, folgavam as costas. Foi cauteloso e murcho."Vai dar uma volta ao bilhar grande.""Vai tu que eu vou lá ter.""Isso é o melhor que consegues?""Para quem é bacalhau basta."Na multidão, alguém, farto de preliminares, gritou: "Nem o pai morre nem a gente almoça. Estes gajos são uma cambada de caguinchas, isto vai ficar tudo ficar em águas de bacalhau". Era o maluco do bairro, veterano da Legião Francesa, que, acompanhado de uma garrafa de bagaço, era mestre em fazer trinta por uma linha.Os olhos de Manuel, entre o ensandecido e o estrábico, fixaram o opositor. Às duas por três, com uma voz inusitadamente sensual, disse: "Vais levar nos cornos", desvelando uma voluptuosidade capaz de deixar as mulheres cálidas e de coxas apertadas.Num gesto também inesperado, Joaquim puxou Maria para si e saltou-lhe à boca como se no final de um musical de teatro.Caiu o Carmo e a Trindade. Manuel atirou-se do palco e lançou um gancho ao bigode de Joaquim. Foi rés vés Campo de Ourique. Mas já estava montado um 31, e o maluco da Legião Estrangeira gritou "É à balda", iniciando-se assim um memorável festival de pontapé e estalo, com cadeiras pelo ar e gajos pendurados nos candeeiros, que só findou com a chegada da guarda.Claro que acabou tudo na esquadra, mas, entre feridas e arranhões, ninguém morreu. Manuel e Joaquim livraram-se da guerra em África porque revolução chegou no ano seguinte. E Maria, a quem não bastava bacalhau, acabaria por casar-se com um ministro.Nessa noite de santos populares de 1973, o maneta teve de arranjar espaço num cantinho do seu planeta de ferro velho. Diretamente da Pena, tinha chegado uma remessa de dentaduras partidas, mesas sem pernas, alguns pares de óculos e um bigode postiço.

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