Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


04-07-2015

Aqui começa o inferno - Tempo: antes de 1975. Espaço: Angola Fernando Ribeiro


 

Café em flor numa fazenda da região dos Dembos, norte de Angola. (Foto: Mário Ferreira Silva)


Tempo: antes de 1975. Espaço: Angola.

«Aqui começa o inferno», dizia uma tabuleta existente num cruzamento de picadas no coração da região dos Dembos, uma região situada entre Luanda e Uíge. A placa devia ter sido ali colocada por militares portugueses, porque a região era palco de combates entre as Forças Armadas Portuguesas e os movimentos independentistas MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola).

Apesar da guerra, algumas fazendas de café pertencentes a colonos brancos mantinham-se em atividade naquela zona, tirando partido da rivalidade que havia entre os dois movimentos nacionalistas angolanos e beneficiando da presença de uma companhia do Exército Português aquartelada nas proximidades. Mesmo assim, as fazendas eram alvo frequente de flagelações, empreendidas tanto pela FNLA como pelo MPLA, as quais não deixavam de causar, por vezes, mortos e feridos. 

Em todas as fazendas havia guardas armados, que tinham como missão defendê-las dos ataques dos guerrilheiros, por um lado, e evitar que algum trabalhador fugisse, por outro. Alguns dos guardas eram agentes da Guarda Rural, uma divisão da PSPA (Polícia de Segurança Pública de Angola), enquanto outros eram mercenários da OPVDCA (Organização Provincial de Voluntários para a Defesa Civil de Angola), uma força paramilitar constituída por brancos. Além de desempenhar as funções de guarda e proteção das fazendas e de outros bens pertencentes a colonos, a OPVDCA desencadeava "operações militares", feitas à revelia das Forças Armadas Portuguesas, que consistiam em ataques lançados contra a população civil desarmada, que vivia refugiada nas matas e apoiava os guerrilheiros.

«Aqui começa o inferno», dizia, portanto, o letreiro. Mas quem percorresse aquela região e olhasse para as suas roças não poderia deixar de ficar encantado com a beleza incomparável das plantações de café, as chamadas tongas, impecavelmente tratadas. «Inferno, isto?!», interrogar-se-ia o forasteiro, maravilhado perante o espetáculo dos cafezais em flor. «O que isto lembra, é um paraíso, isso sim!»

E contudo a placa estava certa. Ali começava efetivamente o inferno, não para os fazendeiros e os seus raros visitantes, mas para os trabalhadores forçados negros que tinham sido obrigados a deixar as suas terras e as suas famílias, a muitas centenas de quilómetros dali, para tratarem das plantações de café durante um ano por um salário irrisório: os chamados contratados, na cínica terminologia oficial, bailundos, na designação que lhes era dada pelos colonos — porque a maioria deles (mas não todos) era originária da populosa região do Bailundo, no Planalto Central — ou monangambas, como eram chamados pelos restantes angolanos. Estes trabalhadores estavam no nível mais baixo da escala social em Angola, desprovidos de quaisquer direitos e reféns da vontade dos seus patrões.

Aqueles homens eram "contratados" à força, na sua maior parte, pelos chefes de posto administrativo de que dependiam as suas aldeias de residência, por não terem cumprido, dentro do prazo legal, o pagamento do chamado imposto geral mínimo, a que todos os adultos em Angola estavam obrigados. A maior parte deles não tinha efetivamente pago o imposto a tempo e horas, apenas porque era pobre demais para o poder fazer. Tanto bastava para que eles fossem arrancados às suas terras e às suas famílias e levados para trabalhos forçados, como se fossem criminosos. Este era o método mais utilizado na região do Bailundo. Uma outra forma de "contratar" mão-de-obra forçada, mais usada em áreas urbanas, consistia na realização de rusgas policiais, durante as quais se caçavam os homens negros que não estivessem na posse de qualquer documento de identificação.

A vida que levavam os trabalhadores forçados nas fazendas de café foi em grande parte descrita por António Jacinto no seu poemaMonangambé, que Rui Mingas musicou e cantou. Neste poema, talvez se imponha um esclarecimento a propósito do seguinte verso: «E cabeças de pretos para os motores». Na sua imensa ignorância, os contratados acreditavam que o combustível usado nos motores das máquinas e dos carros era feito a partir de cabeças de pretos! Nós hoje poderíamos sorrir de uma tão grande ingenuidade, mas não devemos. Esta curiosa crença reflete de uma forma extraordinariamente eloquente o estado de espírito, profundamente deprimido e temeroso, que prevalecia entre aqueles pobres homens. Na verdade, o verso «E cabeças de pretos para os motores» diz mais do que mil palavras.



Monangambé, de António Jacinto e Rui Mingas, por Lura


Um outro poema de António Jacinto, a belíssima Carta de um Contratado, mostra-nos uma outra faceta do estado de espírito dos monangambas: a saudade. À medida que os meses iam passando, as saudades da terra e dos seus entes queridos iam-se apertando cada vez mais no coração daqueles homens. Aferroados pelas saudades e fartos dos maus-tratos sofridos na fazenda, alguns trabalhadores fugiam. Fugiam, mas não iam longe. Como não eram da região, não conheciam os seus caminhos e tinham medo de se perder nas grandiosas e densíssimas florestas dos Dembos. Por isso, acabavam sempre por fugir ao longo de uma picada que os conduzisse para sul. Em consequência, os guardas da fazenda, lançados no seu encalço, recapturavam-nos facilmente ao fim de poucas horas. 


De regresso à fazenda, os trabalhadores que tinham fugido eram submetidos a violentos castigos físicos, onde nunca faltava a vergasta (que alguns roceiros faziam questão em trazer sempre na mão), e a duríssimas privações, a fim de servirem de exemplo. Feridos, esfomeados, humilhados, aqueles homens acabavam por se limitar a esperar pela chegada do fim do contrato, ao mesmo tempo que procuravam esquecer as mágoas e as saudades no fumo da liamba (cannabis) e no álcool da cerveja e do maluvo (bebida feita a partir da seiva de palmeira).

Algumas das unidades das Forças Armadas Portuguesas estacionadas nos Dembos tinham médicos militares. Estes médicos também prestavam assistência às fazendas. Cada fazenda era visitada por um médico uma vez por mês, em média, a expensas do proprietário da mesma. Por vezes, o médico vinha acompanhado de um capelão militar, que prestava assistência religiosa. Assim, enquanto o médico atendia os doentes, o sacerdote celebrava missa e ministrava os sacramentos. A falta de padres fazia-se sentir de forma muito aguda na região dos Dembos, já que apenas um sacerdote tinha ficado em toda a região, depois do medonho início da guerra em 1961: o pároco de Nambuangongo, padre Lourenço, que era um transmontano que o povo considerava um herói e um santo, porque nunca abandonou o seu "rebanho". 

Importa abordar também a questão dos salários dos trabalhadores forçados, que é uma questão que tem uma importância fulcral em todo este processo. Cada trabalhador recebia, na fazenda, apenas metade do seu reduzidíssimo salário. A outra metade ficava retida, para só ser paga quando ele estivesse de volta à sua terra de origem, depois de terminado o contrato. 

O dinheiro que era entregue de imediato aos trabalhadores na fazenda destinava-se a possibilitar-lhes a compra de diversos artigos de consumo corrente: sabão, lâminas para a barba, fósforos, cigarros sem filtro, a cerveja dos sábados à noite e pouco mais. Mas, mesmo que nas redondezas existisse uma loja onde estes artigos estivessem à venda, os contratados não podiam comprá-los nela. O patrão proibia-lhos. Os contratados só podiam fazer as suas compras na cantina da própria fazenda, pagando o preço que o fazendeiro muito bem entendesse, por mais especulativo que fosse. Resultava daqui que o dinheiro que era pago na fazenda aos trabalhadores regressava logo a seguir aos bolsos do patrão, através da cantina.

Acontecia com frequência que — ou porque os preços eram demasiado altos, ou porque os salários eram demasiado baixos, ou porque os trabalhadores não sabiam ou não podiam controlar os seus gastos — muitos destes homens chegavam ao fim de um ano de contrato a dever dinheiro à cantina, ou seja, ao patrão. Resultava daqui que eles eram obrigados a continuar a trabalhar na roça depois de terminado o período de contrato, a fim de liquidarem a sua dívida. Em alguns casos, quanto mais tempo eles trabalhavam, mais a sua dívida aumentava. Através deste estratagema, ficava assegurada uma parte da mão-de-obra forçada de que as roças de café faziam uso. 

Depois de terminarem o contrato e regressarem finalmente a casa, os trabalhadores deveriam receber, das mãos do chefe de posto da sua área de residência, a segunda metade dos seus salários, que tinha sido retida. Deveriam receber, mas alguns não recebiam. O dinheiro que tanto lhes tinha custado a ganhar "evaporara-se"; alguém se tinha apoderado dele. Quando chegava a altura de pagarem de novo o imposto, estes desgraçados não tinham dinheiro para pagá-lo e por isso eram obrigados a cumprir mais um ano de contrato. 

A maioria dos ex contratados recebia, de facto, o dinheiro que lhes era devido. Uns poucos recebiam-no a tempo de satisfazer o pagamento do imposto, mas muitos deles só recebiam depois de ter terminado o prazo. Como não tinham podido satisfazer a sua obrigação fiscal a tempo, em virtude de ainda não terem recebido o dinheiro, estes homens eram de novo detidos, para cumprirem mais um ano de trabalhos forçados. E isto ia sucedendo ano após ano, até que eles tivessem a sorte de serem pagos a tempo e horas ou até que não tivessem mais forças ou saúde para trabalhar. Ficava assim garantida a abundância de mão-de-obra forçada nas roças de café e em outras atividades económicas da colónia.

Isto aconteceu em Angola até 1975.

(Uma primeira versão deste artigo foi publicada no blogue Mukandas do Monte Estoril, de Inácio Rebelo de Andrade, a quem agradeço a hospitalidade concedida).

http://amateriadotempo.blogspot.pt/2010/09/aqui-comeca-o-inferno.html