10-06-2004Bocage Triunfo do Amor Cinema Brasileiro Guido BilharinhoO Cinema Poético Guido Bilharinho O filme Bocage, O Triunfo do Amor (1997), de Djalma Limongi Batista (Manaus/AM, 1950-), comprova que é possível realizar-se cinema poético, denso, consistente e belo. Em que a beleza é meio e fim da obra. Em que se pode (e se deve) romper as amarras da estrutura ficcional tradicional. Em que mediante tal subversão consegue-se atingir patamar artístico superior. O cinema poético de Limongi baseia-se na vida e na obra do poeta português Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805), distanciando-se, porém, da comum matéria fática e da narrativa convencional correspondente. Ao invés de contar ou narrar fatos e acontecimentos, os utiliza apenas como referenciais para elaboração livre, criativa e artística de conteúdo alegórico desvinculado do realismo e do naturalismo. Se ponteia sua criação com certas situações vividas pelo poeta, não se subordina a seus limites temporais e espaciais. Ao invés de reconstituição, comentário imagético; de realidade, encantamento; de fatos, objetos, condicionantes de tempo e espaço, liberdade criadora; de filme de ficção, poesia. A beleza imagética decorre tanto do objeto ou conteúdo da imagem quanto de suas propriedades congeniais, numa simbiose que as amalgama e funde num corpus estético uniforme, vibrante, ágil, requintado. A poesia, como se sabe, não se confunde nem se cinge ao poema, à palavra. Pode ser - e muitas vezes o é - produzida por qualquer elemento do qual se extrai e/ou se infunde beleza estética. Palavra, cor, som, forma, barro, corpos, objetos, enfim, a matéria de modo geral é suscetível de elaboração artística e transformação em arte. Ao contrário de outras manifestações artísticas, que se configuram a partir da utilização de apenas um elemento específico, o cinema compõe-se de série díspare dos fatores encontráveis na realidade e/ou produzidos pela imaginação humana criadora, circunstância que permite a Limongi sintetizar todos os componentes de que se serve (atores, corpos, objetos, paisagens, etc.), fundindo-os imagética, artística, livre e criativamente. De sua reunião, fusão e transcendência e dos conjuntos formados, resulta imagem fílmica de esfuziante esplendor. No filme não há diálogos que não sejam versos de Bocage, não há imagem que não seja do poeta, não há situações que não sejam em sua função. Se é, no mínimo, discutível a ocorrência de criação estética (produção de beleza) nos versos satíricos e fesceninos do poeta português, não se lhes pode negar (daí sua voga e eternização) extrema inteligência formulativa, além de violenta crítica e total liberdade conceitual e vocabular (aspectos alheios à arte). Porém, com sua associação a pontos referenciais biográficos, Limongi compõe refinado corpo cinestético. A beleza poética de versos de Bocage transparece, porém, nos poemas líricos, com diversas passagens citadas nas cenas finais, ambas, passagens e cenas, de alta relevância artística. O filme, aliás, da primeira à última tomada, é toda uma só e compactamente dinâmica criação estética de ímpar e depurada beleza. Todas as cenas são de igual modo destacáveis. Todas as situações são irreverentes como a obra de Bocage. Porém, a dos dois frades conduzindo o poeta é memorável, conquanto as demais também o sejam. Essa porém, atinge nível significativo (estético e temático) à altura das melhores criações congêneres de Buñuel. Bocage, o Triunfo do Amor, triunfo da arte. |