Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


16-03-2014

Ortografias e outras banalidades


Pedro Bacelar de Vasconcelos**«Inútil [a polémica à volta do Acordo Ortográfico], porque sendo o português a língua oficial adotada por oito Estados soberanos, que outros instrumentos, além do tratado internacional, seriam aptos para selar os compromissos de política da língua que os representantes destes povos entenderem úteis?» Artigo publicado no "Jornal de Notícias", de 7/03/2014. A minha já longa carreira académica não poderia ter início em lugar mais auspicioso: foi em outubro de 1958, na escola primária da "Celestial Ordem Terceira da Santíssima Trindade", localizada na ala esquerda da igreja do mesmo nome, entre a Câmara Municipal do Porto e a pedreira da Trindade ainda bem ativa por essa época e cujos rebentamentos iriam pontuar os meus progressos escolares nos quatro anos seguintes. Não se cumpriram, é bom de ver, as celestiais expectativas. Entre as melhores recordações que guardo do meu primeiro ano de estudos, conta-se uma queda de que resultou a fratura do pulso direito, e com ela, o pretexto para umas férias tão saborosas quanto inesperadas! Fratura que, aliás, me iria proporcionar também um álibi duradouro para a minha caótica caligrafia. Adiante! Que não é desta "ortodoxia" que aqui se vai tratar.Embora as turmas femininas e masculinas fossem separadas e repartidas por salas distintas, a aula de Canto Coral, uma vez por semana, era mista. A cantoria não juntava os rapazes e as raparigas no auditório da escola apenas para aprenderem o hino e ensaiarem o repertório oficial do Estado Novo, "cantando e rindo". Antes da música, já com todos os alunos e alunas dispostos no palco, em hemiciclo, servia-se como "aperitivo" o desfile dos "piores alunos", alinhados um a um, obrigados a circular perante colegas e professores com os respetivos cadernos diários abertos e pendurados nas costas para exibir os erros cometidos no "ditado", sublinhados a vermelho, com a respetiva quantificação destacada à mesma cor no topo da página. As clivagens económicas e sociais expostas por este exercício promoviam uma feroz estigmatização, identificando a pobreza com a ignorância: as vítimas convocadas para os "desfiles", semana após semana, eram quase sempre as mesmas.Penso que se reporta a esse espetáculo de desoladora humilhação uma irredutível animosidade contra a ortografia e outras ortodoxias a cujo poder disciplinador, todavia, nos resignávamos contrafeitos. A ortografia, à semelhança da aritmética e da geometria euclidiana, parecia um ciência irrepreensível e definitiva. Só muito mais tarde, com o estudo da etimologia, da história da língua e da literatura, a ortografia iria perder aos nossos olhos a aparência ingénua de uma ordem necessária e indiscutível para desvelar a sua verdadeira natureza caprichosa e convencionada, flagrante na lógica circular das tentativas precárias de transcrição fonética. É por isso surpreendente que o último "acordo ortográfico", apenas mais um, tenha conseguido despertar debates tão empolgantes. É até paradoxal que tendo eu aderido à nova "reforma ortográfica" espontaneamente mas sem particular entusiasmo, me tenha agora envolvido em tão inútil e fastidiosa polémica.Uma polémica fastidiosa, porque a língua pertence a quem a usa. O alargamento do debate público aos leigos e utilizadores indiferenciados – como eu próprio – traduz uma apropriação democrática legítima e o reconhecimento das dimensões cívicas e políticas de um "objeto científico" que não é "couto privado" dos filólogos. A polémica até podia estimular a curiosidade pelos universos da linguagem, a diferenciação e a construção das identidades culturais, o conflito e a complementaridade entre funções expressivas e comunicativas. Não era fatal, enfim, que resvalasse em imputações de duvidosos nexos de causalidade e querelas sobre competências reguladoras e autoridades normativas.Uma polémica inútil, porque sendo o português a língua oficial adotada por oito estados soberanos, que outros instrumentos, além do tratado internacional, seriam aptos para selar os compromissos de política da língua que os representantes destes povos entenderem úteis? Penso que o "novo acordo ortográfico" será um instrumento positivo para a valorização e o reconhecimento internacional da língua que falamos. Que as autoridades políticas tratem da ortografia, parece-me bem. Porque da língua, cuidamos nós!Cf. Reações e sínteses noticiosas sobre a Resolução 890/XII/3.ª * artigo publicado no "Jornal de Notícias", de 7 de março de 2014. :: 07/03/2014Sobre o autor** constitucionalista português, professor na Universidade do Minho.

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