22-03-2006 Civilização ou Império Islâmico A P Machado António Palhinha Machado
Há que saber, primeiro, o que se passava na Península Arábica ao tempo do Profeta. Lá, como em quase todo o Norte de África (com especial realce para a Ifriquia, hoje Tunísia, com partes das Líbia e Argélia actuais) a religião dominante era o judaísmo. Eram judeizantes as cidades-estados que pontuavam as rotas comerciais do Oriente para o Mediterrâneo. Eram judeizantes os reinos da Arábia Felix (ainda hoje conhecida por Yemén, isto é, Ibn Yamin ou, na versão latinizada, Benjamin (a 13ª tribo de Israel). A Oriente, nas margens do Golfo Pérsico predominavam o cristianismo nestoriano e o zoroastrismo. No delta do Nilo, e em vários enclaves do Mediterrâneo oriental cruzavam-se o cristianismo copta e o cristianismo ocidental (que mais tarde se cindiria em cristianismo romano e cristianismo ortodoxo). Mas eram ainda frequentes restos de anteriores cultos mais complexos (como os de Mitra e de Heliogábalo) ou mais rudes (como aqueles praticados em Meca pelas gentes do deserto). No plano religioso, Mohamed hesitou entre o judeísmo e o cristianismo nestoriano (são muitos os vestígios destas duas religiões no Corão). No plano político-militar, e mesmo no plano comercial, a afirmação das tribos de deserto (como a dos corainitas a que o Profeta pertencia) passava pela subjugação das cidades-estados e dos reinos vizinhos. O sincretismo islâmico resolveu (bem, como a História veio demonstrar) esse problema. Mohamed, ao oferecer uma religião derivada daquelas que os oponentes seguiam, e com o forte argumento de que se tratava de algo mais perfeito (resolvendo muitos dos conflitos e das perplexidades, sobretudo no plano da organização social, com que as religiões então prevalecentes se debatiam) transformava vencidos em partidários e aliados. O êxito foi retumbante, já que a expansão fulgurante do islamismo nunca poderia ter sido assegurada, apenas, pelas pouco numerosas tribos do deserto. Enfim, o primeiro movimento militar bem sucedido (tinha havido outro, com idêntico alvo, anos antes, mas esse acabou mal) do Islão, a conquista de Medina (que abria as lucrativas rotas comerciais do noroeste, em direcção ao Mediterrâneo), pôs Mohamed em confronto com populações judeizantes - não com assírios (que não eram árabes e estavam distantes uns bons milhares de Km para nordeste). Aliás, o conflito entre Árabes do Sul e Árabes do Norte sempre minou a Umma (ou seja, a unidade de todos os mussulmanos sob o Islão), tanto como o cisma inicial entre fatimidas (seguidores de Fátma, filha do Profeta, e do genro deste, Ali) e sunitas (seguidores de Omar, tio materno de Mohamed). Posto que o Islão sempre se expandiu manu militar, vítimas terá feito. Contudo, a guerra era travada, não segundo as suratas corânicas, mas com as práticas ancestrais, e o animus, dos povos que as travavam. De qualquer modo, é exagerado afirmar que poucos foram os povos que sobreviveram. Neste ponto, a "conquista árabe" da Península Ibérica é capaz de ser um bom exemplo. Não era árabe, mas berbére, o grosso das (reduzidas) tropas de Tarik (ele, um escravo berbére) e de Mussa (este, sim, árabe do Norte); não se tratou verdadeiramente de uma invasão militar, mas da intervenção numa guerra civil entre facções do império visigótico, uma das quais chamara em seu auxílio (com promessa de saque) as tropas mussulmanas que percorriam o Norte de África; sabe-se que muitos da facção vencedora, e alguns vira-casacas da facção vencida, mantiveram as suas posições político-sociais (por exemplo, os Qusman/Gusmão, em Hispalis/Sevilha), e isso durante sucessivas gerações; a adesão das populações locais (quer da nação judaica, quer da nação cristã) abraçaram entusiasticamente a nova fé, por verem nas anteriores, ou o estigma da impotência perante sucessivos agravos (caso do judeísmo), ou uma imposição dos poderosos (tenha-se presente que o arrianismo e o priscilianismo tinham sido pujantes na época visigótica, menos de cem anos antes). A civilização islâmica (prefiro o termo ao genérico "árabes") teve duas contribuições magnas para o evoluir da Homem Ocidental (por todo o texto em apreço perpassa uma visão exclusivamente ocidental que dá por inexistentes - logo, despreza - os efeitos do islamismo a Oriente, na Pérsia, na Índia, em partes da China e na Ásia Central, ou na África Oriental): (i) foi o receptáculo que evitou o desaparecimento, e o abastardamento bárbaro (pelos povos germânicos), da cultura greco-romana; (ii) serviu de leito conjugal e fecundo (Alexandre e o helenismo foram demasiado efémeros para poderem gerar descendência vigorosa) de civilizações que até então mal se conheciam. Terá sido pouco? Cabe à sensatez e à honestidade intelectual de cada um dar resposta. E é uma questão ainda em aberto entre os historiadores sérios que se recusam a pagar imposto ao "politicamente correcto". Afirmar que hindus, persas (como Al Kharismi), assírios/iraquianos (como Ommar Kayyam), marrakish (como Ibn Rush/Averróis e Ibn Khaldoun), ibéricos (como Al Mut'hamid e Ibn Hmar) e tantos outros, só porque não eram de etnia árabe, era subjugados é um disparate redondo que em nada contribui para a compreensão das realidades históricas. Eram mussulmanos, crentes e orgulhosos da sua fé, ainda que muitos a tivessem discutido com uma liberdade de espírito e uma rectidão de propósitos que deveriam fazer corar de vergonha o autor do texto que estou a comentar. Quanto à subjugação/conversão compulsiva ao islamismo, as coisas também raramente se passaram como este autor quer fazer crer. Antes do mais, há que saber que o Islão não é uma religião prosélita, como é o cristianismo nas suas diversas formas: a adesão ao Islão é um acto individual; os idólatras são exterminados, mesmo antes de se lhes dar a oportunidade da conversão, por serem contrários à Lei Revelada; os povos do Livro (judeus e cristãos) são tolerados, mas não incentivados à conversão. Também aqui, muitos episódios da história de Al-Andalus são exemplares (como o dos mártires de Córdova, ou dos movimentos de conversão em massa, nas comunidades judaicas, na época do Califado). E era assim porque os cofres, primeiro, do Califado de Córdova, mais tarde, das diversas taifas, não podiam dispensar o tributo exigido dos povos do Livro. Por isso, os governantes mussulmanos não só não incentivavam, como chegavam mesmo a abafar com violência, esses surtos de fé que, se tivessem por destino o cristianismo, encheriam de júbilo os espíritos cristãos. A intolerância mussulmana é um facto - e um facto que é sempre fácil apostrofar. Mas uma boa parte dos costumes hoje atribuídos ao Islão não decorrem dos preceitos corânicos, antes estavam lá já quando os povos se tornaram muslim. Muitos destes povos dedicavam-se ao comércio de longa distância (é bom ter presente que o Islão, quando não se expandia por impulso da conquista territorial, seguia as rotas comerciais) e, daí, o tratamento que reservavam à mulher, solução expedita para prevenir conflitos sociais que poderiam ameaçar a sobrevivência da tribo, do clã, ou da família. A intolerância mussulmana tem sido também alimentada por circunstâncias que escandalizarão os pensadores correctos dos dias de hoje: (i) a inexistência de uma hierarquia religiosa; (ii) a reunião numa mesma pessoa, o emir, do poder político e do poder religioso. E estas duas ordens de circunstâncias são, simultaneamente, a causa e a consequência uma da outra - quer dizer, formam um modelo em equilíbrio estável, em que uma delas arrasta sempre a outra para a posição inicial (não vou desenvolver aqui este tema, porque o comentário já vai extenso). Termino com Aragón (esse expoente da cultura ocidental): "La femme est l'avenir de l'homme". No caso, será o futuro do Islão, ou o Islão não terá futuro.
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