Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


06-01-2014

VINHAS DA IRA A Angústia Social


Guido Bilharinho

 

                   Uma das antinomias estéticas em que se posicionam artistas, teóricos da arte e críticos (e muitas pessoas que não se incluem nessas categorias) consiste na divisão entre obras que se comunicam com o público, tematizando problemas sociais e materializando-se em estrutura e linguagem convencionais, e obras que se preocupam (e se ocupam), antes de tudo (e principalmente), consigo mesmas, com seu fazer.

                   Tais posicionamentos apresentam-se inconciliáveis porque o são suas origens, causas, concepções e finalidades.

                   Dificilmente, pelo menos em cinema (relativizando um pouco a questão), é possível conciliar essa oposição.

                   O filme Vinhas da Ira (Grapes of Wrath, EE.UU., 1940), de John Ford (1895-1973), constitui exemplo clássico, em que o forte conteúdo social (haurido do romance homônimo em que se baseia, publicado no ano anterior e de autoria de John Steinbeck) expressa-se convencionalmente.

                   A preocupação básica é narrar a estória, a epopeia às avessas da família Joad, selecionando fatos e resumindo os relacionamentos interpessoais ao mínimo essencial, de modo a permitir o fluir dinâmico da ação.

                   Essa orientação e diretiva, em que se assenta a produção industrial de filmes, visa atender a público receptivo apenas a conhecer e usufruir dos dramas, comédias e tragédias humanas que se apresentem construídos nos limites da inteligibilidade, expostos de maneira direta, para propiciar entendimento imediato e cômodo, em que se não despenda esforço cerebral nem exija conhecimento intelectual, mesmo que pouco refinado.

                   Vinhas da Ira, o filme, cumpre essas exigências (e limitações). Foi realizado para isso mesmo, obtendo o êxito esperado de público e de sua representação espetaculosa no picadeiro circense que é a distribuição do Oscar.

                   Por isso, não apresenta requintada elaboração formal nem profundidade psicológica, horizontalizando-se na construção dos vínculos entre as personagens e documentando o mais fielmente possível a realidade que procura retratar.

                   Não chega, pois, a atingir nível sofisticado, objetivo que  não o presidiu desde que antecipadamente optaram, produção e direção, pela orientação e prática referidas.

                   Não opõe, por isso, nenhuma dificuldade para apreensão do drama que desenvolve, cuja estruturação biparte-se em road-movie (filme de estrada ou viagem) e nas dificuldades que assoberbam a família protagonista (e milhares de outras) na década de 1930 nos Estados Unidos, decorrentes da grande depressão desencadeada pelo colapso financeiro do país em 1929 e consequente exploração capitalista do trabalho humano aos limites do aviltamento (“parece que todos eram inimigos, ninguém era amigável”, diz a matriarca da família).

                   O naturalismo da concepção fílmica, característica da produção industrial, favorece essa contextualização simples, mas, no caso, não simplória, de determinada (e situada) problemática humana, cuja máxima inquirição restringe-se à amostragem mimética e à denúncia da situação humana (“talvez eu possa descobrir o que há de errado”, afirma Joad), destituída de quaisquer investigação e análise das causalidades concretas, profundas e permanentes da ordem econômico-organizacional da sociedade.

                   Nem por isso, todavia, deixa o filme de ter méritos, tanto temática quanto cinematograficamente. Trata-se de um Ford!

                   Nos limites, pois, de sua proposição e realização, é filme competentemente aviado e conduzido. Como antes referido, Ford essencializa fatos e seleciona relacionamentos, duas das mais importantes leis de cinema. Daí, tem-se dialogação condizente com essas características, produzida objetivamente, sem excesso e conduzida com coerência e propriedade em decorrência da referida contenção.

                            O drama humano é forte e como tal se apresenta cinematograficamente, por força não só dos atributos mencionados como da segura direção e interpretação dos atores, a começar por Henry Fonda no papel central, verificando-se, ainda, a criação de ambiência dramática, refletida também nas fisionomias e posturas das personagens da família protagonista, correspondendo à sua angústia social, dada a privação de meios e modos de sobrevivência.

 

(do livro O Drama no Cinema dos Estados Unidos. Uberaba, Instituto Triangulino de Cultura, 2008).

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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema, história do Brasil e regional.