14-10-2017Cada foto é apenas um fragmento, seu peso moral e emocionalRetratos
Poucos hoje se dão conta de que houve uma época em que o ato de ser fotografado era cercado de um ritual para o qual as pessoas se preparavam vestindo seus melhores trajes, usando seus acessórios mais caros, arrumando o cabelo e fazendo poses em que procuravam mostrar-se da forma como julgavam transmitir o melhor de si. As fotografias podiam ser enviadas como presentes para parentes e amigos ou expostas em lugar de destaque na sala de visitas. Pois as fotografias já foram assim, e um de seus formatos – o retrato – chegou a ser o gênero mais comercializado no Brasil no início do século XX, segundo nos conta Luísa Kuhl. Como possivelmente nossos familiares emigrados da Europa aqui chegaram em busca de conforto material – ou “para fazer a América”, como se costumava dizer -, devia ser importante para eles transmitir à família que não viera uma imagem de sucesso material e felicidade que, ao mesmo tempo, os identificasse com o grupo social de referência para eles – a burguesia local. Assim, os estúdios dos fotógrafos profissionais dispunham de figurinos, acessórios e cenários variados para escolha do cliente que buscava representar algo que poderia ainda não ser a realidade. Na cultura materialista que marcou o início do século XX, isso tinha enorme valor para aqueles que tentavam se inserir em um mundo estranho como a América, afinal, como afirma Susan Sontag:
Se no século XIX a fotografia dava à burguesia e ao proletariado uma distinção – a auto representação – que até então era exclusiva da nobreza, que podia pagar retratos feitos por pintores famosos, no início do século XX o retrato fez o mesmo para o emigrante em relação às elites burguesas já estabelecidas localmente. É, portanto, com um olhar não ingênuo que devemos analisar os retratos de nossos parentes que emigraram da Europa no início do século passado. Nenhum adereço deve ser encarado como acidental, nenhuma pose, como espontânea. Tudo pode estar imbuído de grande valor simbólico. É por essa razão, nos lembra Susan Sontag, que:
Foto feita em estúdio – Autor desconhecido | Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural Além disso, ao analisar os retratos, devemos levar em conta que esses objetos tiveram uma vida própria e que a história da família está inscrita neles de forma mais óbvia – por exemplo, em dedicatórias ou recortes para eliminar do quadro alguém que desobedeceu ao código moral da família – ou menos óbvia – por exemplo, nas cores desbotadas pela exposição ao sol em uma estante na sala de visitas, onde o retrato era exibido com orgulho. Há mais significados, portanto, do que apenas o que foi quimicamente registrado no papel fotográfico e as impressões que nossos familiares possam ter tido a intenção de transmitir. Finalmente, não podemos nos limitar a uma análise puramente objetiva, pois retratos mobilizam o olhar sobre as memórias familiares e, por meio delas, o afeto e as emoções positivas e negativas. Ao mesmo tempo que nos permitem reconhecer a mortalidade e a mutabilidade, eles nos aproximam de pessoas que talvez nunca tenhamos conhecido e, dessa forma, tornam-se um convite ao sentimentalismo, “transformam o passado no objeto de um olhar afetuoso, embaralham as distinções morais e desarmam os juízos históricos por meio do páthos generalizado de contemplar o tempo passado”, como afirma Susan Sontag na obra já citada. Para exemplificar, proponho um exercício com o retrato abaixo, que foi extraído de meu acervo familiar. Nele, veem-se minha avó paterna e meus tios Júlio e Maria. O original provavelmente tinha o formato clássico de foto postal (9cm x 12cm), que se tornou popular para exibição dos grupos familiares e costumava ser enviado acompanhando cartas para parentes distantes, reiterando “laços de consanguinidade, amizade e, sobretudo, saudades”, como explica Nelson Schapochnik. Não é possível descobrir se o retrato foi feito em estúdio ou em residência, porém na época estimada, graças à disponibilidade dos flashes de magnésio, o segundo caso já se teria tornado viável. Ainda que tenha sido feito em casa, é notável a intenção de apresentar a melhor imagem: os retratados usam roupas que provavelmente não usariam no dia a dia – pode-se imaginar que poucos meninos da idade de meu tio estariam usando uma camisa branca tão impecavelmente limpa e totalmente abotoada – e se apresentam de frente para a câmera, em poses nada espontâneas. Acervo familiar – ca. 1925 O exemplo apresentado parece corroborar a interpretação de um retrato de imigrantes europeus e seus descendentes de primeira geração representando um quadro de prosperidade e tranquilidade material para quem quer que recebesse a fotografia acompanhada de uma carta relatando os fatos recentes e as saudades causadas pela distância oceânica. O que o retrato não revela teria de ser interpretado com base em outras fontes, como relatos orais, as próprias cartas – se ainda existirem – e documentos que atestassem o progresso material encenado no quadro. José Araújo é linguista e genealogista amador. Retratos
Poucos hoje se dão conta de que houve uma época em que o ato de ser fotografado era cercado de um ritual para o qual as pessoas se preparavam vestindo seus melhores trajes, usando seus acessórios mais caros, arrumando o cabelo e fazendo poses em que procuravam mostrar-se da forma como julgavam transmitir o melhor de si. As fotografias podiam ser enviadas como presentes para parentes e amigos ou expostas em lugar de destaque na sala de visitas. Pois as fotografias já foram assim, e um de seus formatos – o retrato – chegou a ser o gênero mais comercializado no Brasil no início do século XX, segundo nos conta Luísa Kuhl. Como possivelmente nossos familiares emigrados da Europa aqui chegaram em busca de conforto material – ou “para fazer a América”, como se costumava dizer -, devia ser importante para eles transmitir à família que não viera uma imagem de sucesso material e felicidade que, ao mesmo tempo, os identificasse com o grupo social de referência para eles – a burguesia local. Assim, os estúdios dos fotógrafos profissionais dispunham de figurinos, acessórios e cenários variados para escolha do cliente que buscava representar algo que poderia ainda não ser a realidade. Na cultura materialista que marcou o início do século XX, isso tinha enorme valor para aqueles que tentavam se inserir em um mundo estranho como a América, afinal, como afirma Susan Sontag:
Se no século XIX a fotografia dava à burguesia e ao proletariado uma distinção – a auto representação – que até então era exclusiva da nobreza, que podia pagar retratos feitos por pintores famosos, no início do século XX o retrato fez o mesmo para o emigrante em relação às elites burguesas já estabelecidas localmente. É, portanto, com um olhar não ingênuo que devemos analisar os retratos de nossos parentes que emigraram da Europa no início do século passado. Nenhum adereço deve ser encarado como acidental, nenhuma pose, como espontânea. Tudo pode estar imbuído de grande valor simbólico. É por essa razão, nos lembra Susan Sontag, que:
Foto feita em estúdio – Autor desconhecido | Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural Além disso, ao analisar os retratos, devemos levar em conta que esses objetos tiveram uma vida própria e que a história da família está inscrita neles de forma mais óbvia – por exemplo, em dedicatórias ou recortes para eliminar do quadro alguém que desobedeceu ao código moral da família – ou menos óbvia – por exemplo, nas cores desbotadas pela exposição ao sol em uma estante na sala de visitas, onde o retrato era exibido com orgulho. Há mais significados, portanto, do que apenas o que foi quimicamente registrado no papel fotográfico e as impressões que nossos familiares possam ter tido a intenção de transmitir. Finalmente, não podemos nos limitar a uma análise puramente objetiva, pois retratos mobilizam o olhar sobre as memórias familiares e, por meio delas, o afeto e as emoções positivas e negativas. Ao mesmo tempo que nos permitem reconhecer a mortalidade e a mutabilidade, eles nos aproximam de pessoas que talvez nunca tenhamos conhecido e, dessa forma, tornam-se um convite ao sentimentalismo, “transformam o passado no objeto de um olhar afetuoso, embaralham as distinções morais e desarmam os juízos históricos por meio do páthos generalizado de contemplar o tempo passado”, como afirma Susan Sontag na obra já citada. Para exemplificar, proponho um exercício com o retrato abaixo, que foi extraído de meu acervo familiar. Nele, veem-se minha avó paterna e meus tios Júlio e Maria. O original provavelmente tinha o formato clássico de foto postal (9cm x 12cm), que se tornou popular para exibição dos grupos familiares e costumava ser enviado acompanhando cartas para parentes distantes, reiterando “laços de consanguinidade, amizade e, sobretudo, saudades”, como explica Nelson Schapochnik. Não é possível descobrir se o retrato foi feito em estúdio ou em residência, porém na época estimada, graças à disponibilidade dos flashes de magnésio, o segundo caso já se teria tornado viável. Ainda que tenha sido feito em casa, é notável a intenção de apresentar a melhor imagem: os retratados usam roupas que provavelmente não usariam no dia a dia – pode-se imaginar que poucos meninos da idade de meu tio estariam usando uma camisa branca tão impecavelmente limpa e totalmente abotoada – e se apresentam de frente para a câmera, em poses nada espontâneas. Acervo familiar – ca. 1925 O exemplo apresentado parece corroborar a interpretação de um retrato de imigrantes europeus e seus descendentes de primeira geração representando um quadro de prosperidade e tranquilidade material para quem quer que recebesse a fotografia acompanhada de uma carta relatando os fatos recentes e as saudades causadas pela distância oceânica. O que o retrato não revela teria de ser interpretado com base em outras fontes, como relatos orais, as próprias cartas – se ainda existirem – e documentos que atestassem o progresso material encenado no quadro. José Araújo é linguista e genealogista amador.
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