06-01-2014Duas Línguas irmãs – Juan Arias, em ‘El País’Conforme anunciado pelo grupo editorial Prisa no último mês de junho, o jornal espanhol El País lançou na Internet, no dia 26 de novembro, a versão digital em Língua Portuguesa, voltada ao público brasileiro. O diário espanhol já conta com uma redação em São Paulo com 15 profissionais locais para as edições em linha. O jornalista, filólogo e escritor Juan Arias, correspondente do diário espanhol no Rio de Janeiro, assina o artigo Duas Línguas irmãs, uma homenagem às Línguas portuguesa e espanhola, celebrando a chegada da sucursal brasileira de El País. Juan Arias é escritor e correspondente de El País no Rio de Janeiro. O texto do artigo apresenta as diversidades e as semelhanças das duas grandes Línguas ibéricas, quanto à fonética, à pronúncia e ao vocabulário. O jornalista relembra a sua própria experiência pessoal com a Língua Portuguesa – a mesma Língua que Miguel de Cervantes, no século XVI, chamou de “graciosa, doce e agradável”. Juan Arias faz uma defesa do bilinguismo, do conhecimento mútuo das Línguas portuguesa e espanhola, ambas as línguas bem presentes nos dois lados do Atlântico. “Duas Línguas prenhas de história e de cultura, berços, ambas, de uma literatura invejável no mundo.” Já no título do texto, o autor realça a sua admiração por duas Línguas que são irmãs “porque elas nascem de uma mesma cepa latina”. “Tudo isso para dizer que eu”, assim completa o autor, “me sinto feliz de ver que este jornal com vocação global e ibero-americana tenha decidido falar também português”. A seguir, Ventos da Lusofonia reproduz o texto Duas Línguas irmãs, publicado originalmente na edição em linha em português de 28 de novembro do jornal El País. . –– Duas Línguas irmãs –– Juan Arias . . Meio continente da América Latina fala a língua de Cervantes e García Márquez, e o outro meio – como dizia anteontem [26 de novembro] em uma entrevista a este jornal a presidenta da Academia Brasileira de Letras, Ana Maria Machado – fala o português de Camões e Guimarães Rosa, indicando que o Brasil, mais do que um país, é quase metade do continente. Deveríamos todos, então, falar espanhol e português? É uma pergunta que se fizeram alguns brasileiros quando foi aprovada aqui, há alguns anos, a lei que obrigava as escolas públicas a oferecerem, aos alunos que desejassem, o ensino do espanhol. As leis, no entanto, acabam em letra morta se não houver a vontade de cumpri-las por parte do poder e dos cidadãos. E essa vontade depende de mil imponderáveis. O autor lança a pergunta: “Deveríamos todos, então, falar espanhol e português? Somos juntos, hispanófonos e lusófonos, uma das maiores populações do mundo. O que nos separa é muito menor do que o que nos une.” No caso do Brasil, me lembrava [Ana Maria] Machado – e pude comprová-lo nos 15 anos em que venho informando a partir deste país –, os brasileiros entendem o espanhol muito melhor, por exemplo, do que os espanhóis entendem o português. Por uma simples razão fonética: nossas vogais [em espanhol] são todas abertas, sem nasais, as deles [brasileiros] são mais sinuosas, mais curvilíneas, mais musicais. A expressão de queixa com caráter sexual, por exemplo: “pô” (nem pronunciam inteira) não soará nunca como o espanhol joder ou carajo. Eu me refiro ao espanhol da Espanha, porque o que se fala em geral na América Latina de alguma forma se aproxima mais da musicalidade brasileira, embora também seja mais compreensível para eles porque suas vogais são abertas. Quando me convidam para um programa de televisão, sempre me avisam: “Se preferir falar espanhol, pode falar, nossos ouvintes entendem”, algo que não ocorre ao contrário. Às vezes, os brasileiros têm mais dificuldades para entender o português de Portugal, ou “europeu”. Há sons dos brasileiros que um espanhol precisa de anos para pronunciar como eles, se é que conseguirão, como “pão”, “coração” ou “paixão”. Um amigo meu me disse um dia: quando você pronunciar bem essas três palavras, poderá dizer que fala “brasileiro”; antes, não. * * * Na primeira vez que cheguei ao Brasil, numa das viagens do papa João Paulo II, acostumado aos sons estridentes dos alto-falantes dos nossos aeroportos espanhóis, fiquei extasiado quando em um dos aeroportos brasileiros (já não me lembro qual) uma voz feminina, como um lamento sensual, avisou: “Próximo destino: Manaus”. Um colega espanhol da comitiva papal, muito castiço, enviado especial da Rádio Nacional da Espanha, me disse: “É que a gente se derrete de satisfação”. E acrescentou: “É que nós falamos de um jeito muito bruto”. Os brasileiros, no entanto, também gostam de escutar o espanhol. Pedem que você fale com eles, sobretudo quando se trata de poesia, de Lorca ou Neruda, por exemplo. Pode ser que, para nós, a nossa língua pareça dura ao lado desse timbre musical deles, mas eles gostam, a acham sonora, com uma musicalidade diferente, dizem. E quem estudou um pouco de espanhol se anima em seguida a entrar na dança. E ao falar nossa língua encaixam nela graciosamente a musicalidade do português brasileiro. Estamos falando de duas Línguas irmãs porque elas nascem de uma mesma cepa latina. Não falamos do português e do alemão ou do sueco. * * * Tudo isso para dizer que eu, que já amo este país como parte de mim, embora às vezes algumas coisas do seu caráter continuem me irritando, como para eles devem irritar outras tantas minhas ou mais, me sinto feliz de ver que este jornal com vocação global e ibero-americana tenha decidido falar também português e a partir daqui, do Brasil, e com uma redação majoritariamente brasileira. São esses gestos, mais que as leis, que podem levar ambos, sem percebermos, a sermos bilíngues sem leis que nos obriguem a isso, só com a força da simpatia recíproca que se cria com diálogo, com intercâmbio de cultura, conhecendo-nos melhor, trabalhando juntos, porque, como dizia a acadêmica Ana Maria Machado, desse modo descobriremos que “somos mais parecidos e menos distantes do que supúnhamos”. Ah, os brasileiros também gostam menos da dor e da tragédia do que nós. São mais inclinados à alegria sensual. É curioso, por exemplo, que a palavra dolor em espanhol, dolore em italiano, douleur em francês, seja em português a mais curta de todas. Reduziram-na, já que não podiam eliminá-la, a uma só sílaba: dor. E até a pronunciam baixinho. “É uma dor”, exclamam diante de algo triste ou uma desgraça, e a sílaba “dor” quase acaba se perdendo no suspiro. Somos juntos, hispanófonos e lusófonos, uma das maiores populações do mundo. O que nos separa é muito menor do que o que nos une. E além do mais a modernidade está nos eliminando a distância física. Logo atravessaremos o Atlântico e chegaremos do Brasil a Madri ou ao México em menos tempo do que às vezes gastamos engarrafados em um carro, em São Paulo ou no Rio. Os conceitos de tempo e espaço estão mudando. Todo tempo a se aproximarem. Só nós continuaremos distantes e separados falando duas Línguas que, como dizia Ana Maria Machado, “quase se entendem”? ::: . |