Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


13-04-2015

A DAMA DA LITERATURA PORTUGUESA : Cleonice Berardinelli


 

Thiago Melo (texto) Bruna Grassi (fotos)

A professora Cleonice Berardinelli tem 96 anos e é a primeira brasileira a receber da Universidade de Coimbra o título de doutora Honoris Causa

O ano era 1944. No Rio de Janeiro, que naquela época era a capital federal do Brasil, a professora Cleonice Berardinelli começava a lecionar Literatura na Faculdade Nacional de Filosofia da, até então, única universidade pública brasileira. Os anos se passaram, o ensino superior brasileiro se estruturou, e 70 anos depois, Cleonice continua a dar aulas na mesma instituição. E ao longo de todos estes anos o amor que ela dedicou à Literatura portuguesa a transformou na maior especialista do assunto no país, bem como a tornou decana dos estudos portugueses no mundo. No dia 18 de maio, aos 96 anos, mais um capítulo da história de Cleonice foi escrito. A professora foi a primeira mulher brasileira a receber o título de doutora Honoris Causa da Universidade de Coimbra, que reconheceu o importante trabalho desenvolvido por ela na formação de professores e investigadores da Língua, Literatura e Cultura portuguesas.

“Significa muito. E para mim começa em D. Dinis. Foi ele quem fundou a Universidade [de Coimbra] e ele era o maior poeta trovadoresco em Língua Portuguesa. Uma figura que me parece muito positiva.  E eu estar aqui significa, em primeiro lugar, aproximar-me mais de D. Dinis, e depois é conviver com alguns antigos amigos que cativei aqui”, disse a senhora de cabelos brancos que, na reitoria da universidade, aprontava-se para a cerimônia de doutoramento que logo aconteceria na Sala dos Capelos. Com as vestes tradicionais e o olhar cheio de emoção, declamou-nos um trecho do poema de Fernando Pessoa a D. Dinis, que para ela representaria melhor o que estava vivendo:

“Na noite escreve um seu Cantar de Amigo

O plantador de naus a haver,

E ouve um silêncio múrmuro consigo:

É o rumor dos pinhais que,

como um trigo De Império, ondulam sem se poder ver”.

A esta hora foi possível perceber o amor que ela dedica à literatura. Os versos de “O plantador de naus a haver”, de Pessoa, foram ditos com vigor e naturalidade, sem hesitação. Versos que ela,  com certeza, há muito trabalha em sala de aula e que, naquele momento, sublimaram o sentimento que trazia no coração.

Durante a cerimônia, a professora lembrou em discurso como enveredou  para o mundo das Letras. “Toda a minha vida acadêmica foi uma sucessão de encantamentos, que começou em 1936 no curso de Neo-latina. Fidelino de Figueiredo me guiou por mares até então pouco navegados por mim, desde os trovadores medievais até os poetas e escritores do século XIX. Amo, defendo, celebro e, sobretudo, transmito aos estudantes tudo o que aprendo desde 1944″, disse Dona Cleo, como é chamada por muitos de seus alunos. Fidelino, assim como Thiers Martins Moreira, foi o professor de Cleonice. Com eles aprendeu a ler textos, tornando-os na sua materialidade e na sua espiritualidade. Com eles também aprendeu a situar e recitar versos de D. Dinis, Gil Vicente, Camões, Antero, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira ou Carlos Drummond de Andrade. “As primeiras aulas que damos à uma turma é sempre uma novidade. E eu sempre achei isso muito bom. Eu tenho ex-alunos que hoje em dia são meus colegas, e que me dizem assim: ‘A senhora não se lembra, mas a primeira aula que a senhora deu na nossa sala foi sobre Gil Vicente’ – e então eu digo, ‘Foi mesmo?’ – ‘Foi! E a senhora entrou declamando o auto da visitação, monólogo do vaqueiro’. Olha, eu não me lembro, não, mas se eles dizem com tanta convicção, eu acredito!”, ri-se.

Mesmo depois da aposentadoria na década de 1980, a professora Cleonice Berardinelli não deixou as salas de aula. Vivendo na cidade do Rio de Janeiro, atualmente ela ministra classes para alunos de pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Pontifícia Universidade Católica, também do Rio. Tudo dentro do limite que os quase 100 anos lhe permitem. “Dou aulas sem obrigação. Participo de muitas conferências, de congressos, mas tenho que controlar um pouco a velocidade dessa rotina, não é. Aposentei-me há muitos anos, mas sou professora emérita e tenho todos os direitos, e sou realmente muito mimada porque os que estão lá (na universidade) foram todos meus alunos, e hoje são professores. Eu costumo dizer que é um grande prêmio que o professor tem e que não há outra profissão que possa ter é o que eu chamo de ‘clã dos meus ex-alunos'”.

Os alunos são uma grande paixão da professora. Em 70 anos de docência, é difícil não esbarrar com alguém conhecido. “Eu vou a qualquer lugar no Rio, e é uma coisa curiosa mesmo. Eu digo assim ‘Hoje eu não vou encontrar ninguém’, e, de repente, eu passo na rua e tem uma cara sorrindo para mim, como quem de diz ‘Lembra-se de mim?’ (…) Às vezes se aproximam de mim e perguntam ‘A senhora não se lembra de mim?’, e eu respondo ‘Da cara eu me lembro, mas do nome, não!’ (risos), e então começamos uma boa conversa”.

O reconhecimento pelo seu trabalho não vem apenas dos alunos, mas também daqueles que são alvos de seus estudos, os escritores. No exemplar do livro Fazendeiro do ar, de 1954, está a dedicatória do autor, Carlos Drummond de Andrade: “À verdadeira fazendeira.” E Manuel Bandeira inspirou-se em Cleonice para escrever duas crônicas. “Ele era um grande amigo, um conversador ótimo”, recorda-se. A professora foi imortalizada ainda pela Academia Brasileira de Letras, onde ocupa desde 2009 a cadeira número 8, fundada pelo poeta brasileiro Alberto de Oliveira.

No mais recente reconhecimento, o  doutoramento Honoris Causa da Universidade de Coimbra, era impossível não notar a serenidade no rosto de Cleonice e, ao mesmo tempo, a ansiedade demonstrada pelas mãos inquietas. Ela era a primeira brasileira a estar ali, na Sala dos Capelos, para receber o maior e mais importante grau concedido pela Universidade de Coimbra. Depois de agradecer ao seu padrinho, o professor catedrático Carlos Reis, em latim, como manda a tradição, a nova doutora cumprimentou os seus colegas doutores e sentou-se junto a eles. Doutora professora Cleonice deixa, para além do seu legado de décadas de trabalho, um ensinamento: “O bom professor de Literatura é o que conhece bem a matéria, que estuda e que se devota à ela. Eu acho que se cheguei a essa idade com a atividade que ainda tenho, é porque eu realizei isto. Deus me deu esta oportunidade, um projeto de vida.  Eu amo a minha profissão. Eu faço aquilo que eu gosto. Não faço nada obrigada. E tudo me realiza. Portanto continuo na rota que Deus me permitiu”.

 

https://cadernosdejornalismo.wordpress.com/2013/05/22/a-dama-da-literatura-portuguesa/