20-09-2004O primeiro jornal do Brasil Adelto GonçalvesAdelto Gonçalves* Lançado a 1º de junho de 1808, em Londres, o Correio Braziliense, de Hipólito José da Costa Furtado de Mendonça (1744-1823), antecedeu em três meses o aparecimento da Gazeta do Rio de Janeiro, jornal oficial da Corte então instalada no Novo Mundo, e passou a ser considerado o marco inicial do jornalismo no Brasil. Mas quem ler as suas edições facsimilares reunidas numa coleção da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, que saiu à luz em 2000, vai descobrir que, a rigor, Hipólito sempre defendeu a continuação do Reino Unido, ficou ao lado das Cortes quando estas sonharam recolonizar o Brasil, apoiou a determinação de fazer voltar ao Reino o príncipe d. Pedro e nunca preconizou a independência brasileira – antes sim, rendeu-se a ela como fato consumado. Portanto, se assim foi, por que a má vontade dos historiadores com a Gazeta do Rio de Janeiro, de fato, o primeiro jornal a ser feito regularmente no Brasil? Claro, por trás dessa tendência de incensar o Correio Braziliense está a má vontade de historiadores republicanos e, no século XX, marxistas que sempre encontraram na instituição da monarquia a fonte de todos os males brasileiros. À distância de dois séculos, porém, sabemos que os brasileiros deveriam olhar com mais carinho para a Gazeta do Rio de Janeiro, atrás da qual repousou em grande parte a figura tutelar de d. Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812), o lº conde de Linhares, o maior ministro do príncipe regente d. João. E quem foi d. Rodrigo? Embora nascido em Chaves, Portugal, o conde de Linhares nem sempre foi patriota no sentido comum do termo, tendo sido, isso sim, antes de tudo, fiel à dinastia dos Braganças, para a qual imaginara um futuro mais seguro na América uma década antes das tropas do general Junot invadirem Portugal. O que quer dizer isso? Simples: foi graças à estratégia de d. Rodrigo que o Brasil tornou-se independente de fato desde 1808. Portanto, se há um jornal ligado à independência do Brasil, é a Gazeta do Rio de Janeiro. A quem vem estas reflexões? Surgem a propósito do lançamento do livro Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil no séxulo XIX, de Marco Morel, professor do departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e doutor em História pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne), e Mariana Monteiro de Barros, mestranda em História pela Uerj, em que os autores destacam o surgimento da opinião pública, os principais periódicos, bem como suas formas de circulação, recepção e os pontos de contacto com a literatura e com a história da imagem (caricatura e fotojornalismo). Livro escrito para os estudantes da disciplina História do Jornalismo nas faculdades de Comunicação, Palavra, imagem e poder trata ainda da formação do público leitor, inclusive feminino, da relação entre redatores e escritores no século XIX e entre a imprensa e diferentes comércios e poderes. O teor do anúncios publicados no jornais, as posições políticas em que militavam face ao problema da escravidão, a descrição da dinâmica social dos locais de venda e a eclosão das primeiras manifestações reivindicatórias dos trabalhadores das gráficas contituem, em síntese, o conjunto de temas abordados nesta obra que, desde já, assume-se como indispensável nos estudos da história da imprensa brasileira. A propósito do Correio Braziliense, Morel e Barros lembram que o periódico de Hipólito, que nunca pretendeu ser noticioso, mas cultural, a exemplo da Gazeta do Rio de Janeiro, defendia a forma de governo monárquica absolutista, a mesma dinastia (Bragança) e apoiava o projeto de união luso-brasileira. Os dois jornais comungavam o repúdio à Revolução Francesa e tudo o que se seguira na França. Além disso, depois da Revolução do Porto em 1820 e com a convocação da Constituinte brasileira, a Gazeta do Rio (já com o título reduzido), escrita pela cônego Vieira Goulart, passou a defender o liberalismo republicano, colocando-se a favor da separação do Brasil de Portugal antes mesmo do Correio Braziliense, que tinha contra si a distância geográfica. Portanto, até por esse prisma, a Gazeta deveria ser considerada o marco inicial da imprensa brasileira, com todo o respeito ao trabalho desenvolvido por Hipólito. Vale a explicação: republicano, no contexto do começo do Oitocentos, deve ser entendido como aquele que defendia a monarquia sob um regime parlamentar; Nada disso, porém, foi levado em conta por historiadores de outros tempos, os mesmos que nunca deixaram de atribuir ao príncipe regente d. João um hipotético caráter pusilânime que o teria levado a abandonar Portugal à própria sorte, optando por uma fuga desesperada e às pressas para o Brasil. Hoje, sabe-se que, se a corte portuguesa não tivesse partido para o Brasil e, em vez disso houvesse cedido às pressões francesas para permanecer, os britânicos teriam bombardeado Lisboa, como haviam feito recentemente em Copenhague, e teriam apreendido ou, mais provavelmente, destruído os navios portugueses no porto de Belém. Afinal, o almirante Sir Sidney Smith recebera instruções claras de Londres para que, sob nenhuma hipótese, a armada portuguesa caísse nas mãos dos franceses, como se pode ler no ensaio “Por que o Brasil foi diferente? Os contextos de Independência”, de Kenneth Maxwell (Mais malandros, São Paulo, Paz e Terra, 2002). Embora muitos historiadores portugueses escrevam como se o Brasil jamais houvesse existido e os brasileiros freqüentemente ignorem as dimensões transatlânticas dos conflitos internos do Brasil nessa época, como diz Maxwell, a verdade é que, até alguns anos depois da separação, a história de um país esteve sempre imbricada na do outro. Foi a Revolução do Porto que fez eclodir no Brasil, através da palavra impressa, pela primeira vez, o fenômeno da opinião pública, com a discussão sobre se família real deveria retornar a Portugal. O debate ganhou intensidade nos impressos e subiu de tom, como assinalam Morel e Barros. Começaram a surgir comparações agressivas. O Brasil seria uma terra de macacos, negros e índios, sem possibilidade de edificar uma verdadeira civilização, diziam os partidários de Portugal. Os portugueses eram decadentes, parasitas das riquezas alheias e incapazes de construir uma nação próspera, diziam os partidários do Brasil, que, aliás, nem sempre era o país de nascimento dos que assumiam tais posições. Depois que d. João retornou, houve outra polêmica que movimentou os jornais da época – que mais eram panfletos: o retorno também de d. Pedro, que acabou por redundar no episódio que passou a ser conhecido como Fico e precipitou a separação. A rigor, não houve uma data que tenha assinalado a ruptura com Portugal. Um documento se refere à independência “em dias do mês de agosto” de 1822, quando então o príncipe regente foi aclamado imperador no Rio de Janeiro, o que reforça a hipótese da invenção simbólica da data de 7 de setembro por meio da criação de um imaginário popular. Cerca de meio século mais tarde, historiadores ligados ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro encontraram um documento escrito pelo padre Belchior que conta a história do grito de “Independência ou Morte” dado por d. Pedro a 7 de setembro de 1822, às margens do riacho Ipiranga, em São Paulo, numa situação fisiológica nada glamourosa: estava acometido de uma desinteria que “o obrigava a todo momento a apear-se para prover”. Evidentemente, o grito foi um exagero de retórica porque não havia nenhum inimigo em potencial à vista: Portugal, uma nação em frangalhos desde a primeira invasão francesa, não reunia forças militares para reverter a situação. Só um ou outro governador de armas numa ou noutra província poderia se opor à idéia da ruptura. Mesmo assim, a partir de meados do Oitocentos, a data passou a ser reverenciada como a da separação do Brasil. Os jornais de 1822-1823, porém, nenhuma referência fazem ao 7 de setembro. ----------------------------------------------------------- PALAVRA, IMAGEM E PODER; O SURGIMENTO DA IMPRENSA NO BRASIL DO SÉCULO XIX, de Marco Morel e Mariana Monteiro de Barros. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 130 págs., 2003. E-mail: dpa@dpa.com.br. ----------------------------------------------------------- *Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
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