Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


02-04-2013

HOMENS DE RESPOSTA - Inácio Rebelo de Andrade


Os entendidos no assunto, que dirigem até escolas de formação para o efeito,dizem que quem quer ser cicerone deve ter determinadas qualidades, entre as quais a da resposta pronta. E explicam porquê: é que os turistas são gente curiosa, interessada por tudo aquilo que vê (importa pouco se um templo, um museu, uma praça, uma
estátua, umas ruínas), pondo muitas vezes perguntas embaraçosas, que exigem respostas imediatas.

Daqui se conclui que alguém desprovido desse atributo, portanto incapaz de esclarecer as dúvidas com que é confrontado constantemente, não pode nem deve dedicar-se a tal profissão.

Os mais radicais na questão observam mesmo que um cicerone digno desse nome, se não tem por acaso resposta pronta para as perguntas que lhe põem — então que a forje, mas com segurança, firmeza, plausibilidade, de modo a ser convincente. Ficar calado ou a gaguejar é que não, porque se desacredita e desabona a agência de que é empregado.

2

Eu tive a oportunidade de confirmar pessoalmente esta regra, quando há alguns anos atrás, numas férias de verão, estive na Ilha de Malta e visitei aí a cidade de Mdina.

Assente no topo de uma colina, Mdina foi na Idade Média a capital da Ilha. Por razões que não vêm aqui ao caso, perdeu esse título a favor de La Valletta, sendo hoje uma prova deteriorada do seu passado longínquo.

Apesar da sua decadência, a cidade continua a ser um lugar de visita obrigatória para o forasteiro, sobretudo durante a Semana Santa, quando a capela de Santa Ágata expõe ao público uma série de miniaturas que reproduzem a paixão de Cristo. Os momentos principais do drama encontram-se aí fielmente representados, desde a ceia do Mestre com os apóstolos em Jerusalém à Sua descida da cruz e deposição no sepulcro. Vestidas e pintadas a preceito, as figuras foram moldadas em terracota; de tão perfeitas e naturais, parecem vivas.

Mas o que Mdina tem de especialmente notável, destacado em todos os prospetos turísticos, é a sua catedral barroca, erigida em homenagem a São Pedro e São Paulo.

Sabe-se que o templo foi bastante abalado, ou mesmo destruído, pelo terramoto de 1693; que foi a seguir reconstruído por Lorenzo Gafa, com o sucesso que continua patente.

É uma obra magnífica: com a cúpula de gomos vermelhos, as torres laterais, o teto recoberto de frescos, os castiçais dos altares, as imagens povoando nichos e peanhas, o ícone formosíssimo da Madona.

Mas não só.

Até o observador menos atento dá depressa conta de um pormenor insólito: que os dois relógios colocados por baixo dos campanários marcam horas diferentes.

3

Na visita que fiz a Mdina, integrado num grupo de estudantes de Arqueologia que partilhavam comigo as instalações do hotel «New Dolmen», essa ocorrência estranha foi logo objeto de comentários.

Um jovem matulão de barba emaranhada observou o que se tornava óbvio: que se tratava de uma avaria de um dos maquinismos — precisamente daquele que dava o tempo errado.

A inferência era fácil de tirar e entrava pelos olhos dentro:

— De certeza! Não pode ser por outro motivo.

Vestido de acordo com as exigências da estação (bermudas de ganga até aos joelhos, camisa de seda aberta sobre o peito, sandálias de tiras nos pés), o cicerone esboçou um sorriso cínico e quase paternalista.

Perguntou num tom de voz em que pôs toda essa sua disposição de espírito:

— Acha que sim?

O jovem matulão confirmou, movendo repetidamente a cabeça. Adiantou mesmo que uma escada estendida ali perto permitia adivinhar que alguém subiria em breve lá acima para proceder à reparação.

— Aposto que amanhã de manhã os relógios já estarão de acordo um com o outro.

Foi a sua vez de sorrir cinicamente; disse «de acordo um com o outro» como se falasse de pessoas, de gente.

Seguro da sua interpretação, questionou:

— Não é verdade?

Claro que não era, nem pouco mais ou menos!, como o cicerone esclareceu.

O estudante fora perspicaz, arguto, dera uma explicação com consistência, com lógica, mas incorreta. Ele estava enganado — redondamente enganado, por mais que isso o incomodasse e lhe ferisse o ego.

Todo o grupo começou a cochichar. De repente, pareceu ficar como que em pulgas, à espera de saber então qual o motivo de tal desconcerto.

Se não era por avaria, por que raio de razão os relógios marcavam horas diferentes?

Não obstante a indumentária modesta, o cicerone era um profissional competente, que honrava o ofício. Bem habilitado para aquele serviço, não temia nenhuma pergunta.

Sem qualquer hesitação, deu a resposta que tinha na ponta da língua:

— Ora, ora, porque o Diabo fica assim baralhado, sem saber quando os ofícios começam...

Inácio Rebelo de Andrade

in Quando as Rolas Deixam de Arrulhar

Edições Colibri, Lisboa, 2010 (versão revista pelo autor