Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


15-12-2015

Todas as memórias podem dar livros VANESSA RATO


14/12/2015 - 08:15

Nas últimas décadas, os historiadores começaram a valorizar cada vez mais a história individual e privada. Uma nova associação,Associação Arquivo dos Diários, está a guardar, em Lisboa, diários de anónimos. E quer publicar alguns deles.

O bisavô da designer Clara Barbacini combateu e morreu nas trincheiras da I Guerra Mundial. Não foi um nome conhecido, não consta nas listas dos grandes heróis, foi apenas um homem comum que um dia viu chegar o fim e escreveu uma última carta à mulher. Foi durante a Campanha Italiana. Mais concretamente, foi nas primeiras Batalhas de Isonzo, de 1915 e 1916, quando o exército italiano decidiu capturar a cidade de Gorizia.

Numa carta anterior, a mulher mandara-lhe uma fotografia dela com os filhos. Na resposta ele pedira-lhe risonho que, da próxima vez, fossem a um fotógrafo melhor porque, de tanto beijar a imagem, a tinta já estava a desaparecer.

As trocas eram frequentes. Até ao momento em que se soube do avanço iminente sobre Gorizia. Os soldados rasos iriam à frente, claro. Como em todas as guerras, os soldados rasos eram carne para canhão e o bisavô de Clara era soldado raso. Percebeu. Na última mensagem à mulher escreveu: “Se eu não voltar…”

Há alguns anos que Clara encontrou estas cartas. Foi delas que nasceu o seu fascínio por biografias de anónimos. Foi a partir delas, também, que surgiu a Associação Arquivo dos Diários, que criou com o sociólogo Roberto Falanga, outro italiano radicado em Portugal.

Deixar uma marca no mundo

Fundada há dois anos, a associação tem agora um espaço – na Biblioteca de São Lázaro, a biblioteca mais antiga de Lisboa e situada na maior e mais diversificada freguesia da capital: Arroios. Até agora, tem contribuído no projecto da União Europeia intitulado Through the Memories. Para ele, vem trabalhando com jovens portugueses sobre a Revolução dos Cravos, momento marco da história nacional. Para fazer mais era preciso assegurar um espaço que permitisse arquivar, tratar e dar garantias de preservação aos materiais recolhidos. E também reunir uma equipa de historiadores e arquivistas, assegurar apoio técnico e jurídico. Agora que essa estrutura está montada, a associação está, por fim, a começar a recolher as cartas e diários através dos quais os portugueses poderão contar a sua história. Como Itália vem fazendo com o Archivio Diarístico Nazionale, que serviu de referência a Clara e Roberto.

Em Pieve Santo Stefano, na Toscana, o Archivio Diarístico, foi criado em 1984 pelo jornalista e escritor Saverio Tutino. Guarda hoje cerca de sete mil diários, cartas e alguns objectos especiais. Como o lençol em que Clelia Marchi registou a sua vida.

Filha de camponeses, Clelia nasceu em 1912. Mal aprendeu a ler e escrever. Casou cedo com Anteo, com quem teve sete filhos. Em 1982, quando ele morreu, pegou num dos lençóis em que tinham dormido juntos durante décadas e contou a vida comum do casal e dos três filhos que sobreviveram à infância. Esse lençol escrito a negro é hoje um dos grandes símbolos do arquivo de Pieve. E, em 2006, a morte de Clelia, aos 93 anos, foi notícia – morrera uma “contadora”, disse a imprensa regional.

“Todos queremos deixar uma marca no mundo, um sinal de que passámos por cá”, diz Clara. Os arquivos como o que ela e Roberto se propõem construir em Lisboa fazem com que as pequenas vozes, silenciadas pelo ribombar maior da dos grandes protagonistas, encontrem também o seu lugar.

Um lugar, na verdade, cada vez mais reconhecido pela História, que aprendeu a valorizar as micronarrativas e a respiração de quotidiano que transportam.

 

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As entregas podem ser feitas na Biblioteca de São Lázaro todos os sábados das 11h às 13h e a associação tem um site com toda a informação em  www.arquivodosdiarios.pt. Tem também uma página de Facebook.

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