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Antonio Borges Sampaio


25-08-2015

Entre cristãos, judeus e cientistas Castelo de Vide ainda tem muito por descobri


Entre cristãos, judeus e cientistas

Castelo de Vide ainda tem muito por descobrir

2011-05-11

Por Susana Lage (texto e fotos)

A judiaria situa-se em ruas íngremes e apertadas

A judiaria situa-se em ruas íngremes e apertadas

Castelo de Vide, situado no distrito de Portalegre, foi habitado por muitos povos ao longo dos tempos. Alguns deixaram antigas vilas de pedra, outros castelos e igrejas, mas o povo judeu deixou muito mais. Para além de ser um lugar com uma história marcada por guerras da Idade Média e pela Inquisição, foi aqui que nasceram grandes cientistas que ainda hoje inspiram investigadores a procurar mais sobre a identidade desta terra.

Entre ruas estreitas que sobem e descem a colina, é possível ver nas ombreiras das portas segredos gravados que o tempo não apagou. São segredos da tradição milenar judaica. Quem conta a história ao Ciência Hoje (CH) é Carolino Tapadejo, ex-presidente da Câmara Municipal e, como próprio descreve, um “modesto admirador” de ciência.

Na judiaria de Castelo de Vide “existem casas que pertencem às mesmas famílias há mais de 500 anos”. Numa das casas de antigos judeus, que Carolino Tapadejo mostrou ao CH, existe mesmo uma capela cristã, para iludir a vigilância da Inquisição, enquanto alberga também uma sinagoga dissimulada.

Inspiração científica

Há 30 anos, a Câmara Municipal de Castelo de Vide entregou-se a uma grande investigação científica quando, na elaboração da Carta Arqueológica do Concelho, em 1975, se conheceram muitos vestígios arqueológicos. Nesta altura, foi criado um Grupo de Arqueologia para estudar, divulgar e preservar os testemunhos da presença humana no Concelho.
 

Carolino Tapadejo, ex-presidente da Câmara Municipal, é um dos guardiões dos segredos da região

Carolino Tapadejo, ex-presidente da Câmara Municipal, é um dos guardiões dos segredos da região

Os trabalhos de arqueologia iniciaram-se só em 1981, mas muito se tem descoberto desde então sobre a história das gentes que habitaram ou que passaram no que é hoje Castelo de Vide. Actualmente, o frequente contacto com as escolas e a realização de exposições fazem com que o trabalho inicialmente proposto se mantenha, levando a que investigadores se interessem sobre o estudo desta região.

“A nossa inspiração científica tem base no Garcia de Orta, que é o cientista mais notável que terá nascido em Castelo de Vide, no século XVI”, afirma Carolino Tapadejo. “A inspiração levou-nos a avançar com um processo de investigação científica para descobrirmos algo mais sobre aquilo que não se conhecia, como a base da judiaria medieval, da vivência dos judeus, das suas práticas, e também para justificar alguns dos comportamentos que hoje ainda temos”, explica.

Hoje, “graças ao processo de investigação científica” podemos encontrar em Castelo de Vide, registos que datam “desde a pré-história, vestígios romanos, visigodos e toda a Idade Média”. O concelho “é um grande exemplo em Portugal de como através da ciência, da investigação, da interpretação que se dá dos cientistas que cá nasceram, continua a atrair gente com interesse para continuar a estudar e para apreciar as belezas das coisas que nos foram deixadas”, diz o antigo presidente da Câmara.
 

O coco-do-mar, a maior semente do mundo (20 kg), era “utilizada por Orta para muitas das suas experiências”, afirma Carolino Tapadejo

O coco-do-mar, a maior semente do mundo (20 kg), era “utilizada por Orta para muitas das suas experiências”, afirma Carolino Tapadejo

Berço de personalidades

Sobre Garcia de Orta, médico e naturalista português, Carolino Tapadejo conta que “depois de ter aqui nascido, porque os seus pais tinham sido expulsos de Espanha por serem judeus, mais tarde vai estudar para a Universidade em Salamanca e Alcalá, volta a Portugal e é médico do Reino e aí começaram as complicações. À medida que começou a ter resultados clínicos importantes, os boticários dessa altura começaram a desconfiar dele, especialmente os ligados à igreja católica, dizendo que aquilo que ele sabia não era ciência mas sim bruxaria”. Com isto, Garcia de Orta“acabou por ir para a Índia, desenvolver as suas investigações, e foi onde acabou por morrer”. De salientar que este “foi o primeiro cientista português a escrever em língua portuguesa”.

No século XVIII, José António Serrano foi uma outra personalidade que nasceu em Castelo de Vide.“Apesar de ser filho de um sapateiro, o pai conseguiu arranjar dinheiro através de uma herança para o pôr a estudar. O jovem distinguiu-se, vinha nas férias a Castelo de Vide e tentou elevar o nível cultural dos seus conterrâneos, enquanto continuava a estudar. Já com a licenciatura, continua as suas investigações da área da anatomia, sobretudo no cérebro humano, tornando-se no primeiro homem na história portuguesa a fazer isso. Foi médico aqui no Hospital da Misericórdia mas acabou por rumar a Lisboa e ainda hoje é uma referência para as faculdades de medicina de várias universidades de toda a Europa”.
 

A fonte da vila, construída por volta de 1500 pela comunidade judaica, era utilizada para consumo doméstico mas também para serviços de tinturaria

A fonte da vila, construída por volta de 1500 pela comunidade judaica, era utilizada para consumo doméstico mas também para serviços de tinturaria

Carolino Tapadejo sublinha que“mesmo numa terra pequena como Castelo de Vide, nasceram e podem nascer mais pessoas que acabam por ser referências no mundo, particularmente na área da ciência”. Mais acrescenta: “O futuro destas zonas pequenas do interior do País será tanto mais promissor quanto tenham identidade. Isso faz com que sejam apetecíveis para se viver, para se continuar a estudar, porque quem não tem história não tem memória”.

O ex-presidente que esteve ao serviço da Câmara durante 15 anos e ainda hoje continua a estudar com um grupo de investigadores de várias partes do mundo, garante que “a cada dia descobrimos mais alguma coisa, nem que seja andar por estas ruas a horas diferentes e descobrir uma pedra diferente ou algo que não tinha reparado apesar de lá ter passado centenas de vezes”.

Para o consultor, “a investigação deve ser posta ao serviço das pessoas e não ficar guardada em gavetas. E aquilo que fizemos foi levar as pessoas de Castelo de Vide pelas ruas e explicar-lhes tudo para ficarem a gostar do sítio onde vivem e perceberem porque é que cá nasceram. Hoje as pessoas têm muito orgulho, porque sabem mais sobre história das suas casas”, por exemplo.

‘Casa do Investigador’

A ‘Casa do Investigador’, junto à Sinagoga, onde outrora funcionou a escola da cultura judaica, pertence à Câmara Municipal e é um espaço de alojamento para investigadores, artistas e outras pessoas que revelem interesse em estudar temas ligados a projectos culturais e científicos de forma a valorizar o concelho. A estadia máxima de 30 dias, com possibilidade de prorrogação, é grátis e só é pedido ao investigador que entregue à Câmara uma cópia do trabalho de investigação desenvolvido.

http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=48989&op=all