Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


13-12-2014

Um novo retrato de Marcos Portugal


 

image

Em 2012 celebraram-se os 250 anos do nascimento de uma figura maior da música luso-brasileira: Marcos Portugal (Lisboa, 24 de Março 1762 – Rio de Janeiro, 17 de Fevereiro 1830). A Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), juntamente com o Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM) da Universidade Nova de Lisboa, associou-se às comemorações através da edição de um livro (A obra religiosa de Marcos António Portugal (1762-1830): catálogo temático, crítica de fontes e de texto, proposta de cronologia, BNP/CESEM, 2012), da organização da maior exposição jamais realizada dedicada ao compositor, inaugurada a 25 de Outubro (Marcos Portugal (1762-1830): 250 anos do nascimento), e da edição do respectivo catálogo, uma co-edição BNP/CESEM com apoio financeiro da Fundação Casa de Bragança (no prelo). Este último, para além dos 490 registos do catálogo propriamente dito, inclui ainda vários textos de especialistas, uma cronologia, imagens de variada índole, e a republicação em fac-símile de três incontornáveis fontes bibliográficas de difícil acesso de Manuel de Araújo Porto-alegre, Mário de Sampayo Ribeiro e Manuel Ivo Cruz.   

A exposição, que estará patente na BNP até dia 31 de Janeiro de 2013, consiste de vários núcleos que contêm fontes musicais – muitas delas autógrafas –, biográficas e iconográficas, para além de bibliografia, discografia e memorabilia. Estas fontes oferecem uma panorâmica diversificada do percurso profissional e biográfico de Marcos Portugal, que passou por Lisboa (onde esteve activo no Real Seminário da Patriarcal, Santa Igreja Patriarcal, Teatro do Salitre, Capelas Reais, Teatro da Rua dos Condes e Real Teatro de São Carlos), por Itália (onde estreou pelo menos 22 óperas em várias cidades), e pelo Rio de Janeiro (onde serviu D. João e, no Brasil independente, D. Pedro). O cerne da exposição é proveniente dos fundos da Biblioteca Nacional de Portugal e da Biblioteca da Ajuda (esta possuindo um grande número de autógrafos de Marcos Portugal, quase todos eles do período brasileiro, 1811-1830), embora inclua também contribuições de outros arquivos institucionais portugueses e brasileiros, além de algumas fontes inéditas de arquivos particulares.

Das fontes iconográficas apresentadas é forçoso destacar duas, ambas inéditas: o busto esculpido por Possidónio da Silva Alves Brandão em 1881, que correspondeu ao nascimento da Academia Marcos Portugal, de existência efémera; e um quadro a óleo de autor desconhecido encontrado por acaso três semanas antes da inauguração da exposição!

O busto de gesso a imitar bronze foi doado pela mencionada academia à Real Academia de Amadores de Música, em 1884, e aí se encontrava em estado lastimável, tendo sido primorosamente restaurado para a exposição por Sara Canaveira. A sua fonte é a conhecida mas rara gravura de Charle-Simon Pradier realizada a partir de uma pintura perdida de Jean-Baptiste Debret, mostrando o compositor na maturidade (após 1821), em traje de gala e ostentando a Cruz de Cristo. O quadro a óleo era até agora desconhecido, não existindo sequer referência em fontes secundárias. Foi encontrado no Conservatório Nacional pela Prof.ª Maria José Borges, e chegou ao conhecimento do autor destas linhas por acaso, através de uma fotografia (de uma parede com vários quadros) colocada no Facebook por ocasião da inauguração da Galeria Histórica do Conservatório Nacional a 1 de Outubro de 2012. Na realidade, o panorama iconográfico referente a Marcos Portugal é esparso, existindo apenas duas fontes originais que deram origem a todas as outras: a referida pintura de Debret e o quadro a óleo agora descoberto, que terá dado origem a uma miniatura colorida e oval (tal como o original). A partir dessa miniatura foi possível identificá-lo como sendo indubitavelmente Marcos Portugal. Na glosas n.º 5, p. 14, está representada uma ampliação dessa miniatura. O miniaturista fez um excelente trabalho, mas representa Marcos Portugal com o rosto ligeiramente mais magro, e não consegue captar a expressão dos olhos, que no quadro aparecem povoados de sonhos e deixam adivinhar uma natureza bem-humorada e bondosa.

As duas perguntas que se impõem são: quem será o autor do quadro, e como foi parar ao Conservatório Nacional? Neste momento apenas é possível conjecturar. De acordo com hipóteses avançadas (mas ainda em estudo) pelo Arq.º José de Monterroso Teixeira, o autor não deverá ser português ou activo em Portugal, mas do norte de Itália, talvez da escola de Veneza, da última década do séc. XVIII. Esta hipótese é corroborada pelo facto de que uma parte significativa das óperas estreadas por Marcos Portugal naquele país ocorreu naquela cidade, o que implicou permanências por períodos mais ou menos longos. Após retornar, em meados de 1800, foi imediatamente nomeado Mestre de Solfa (música) no Real Seminário da Patriarcal, e é natural que tenha oferecido ou emprestado o quadro à instituição. O Conservatório de Música de Lisboa, fundado em 1835, tê-lo-á herdado como parte de um vasto espólio do Real Seminário (extinto no ano anterior). É natural que a memória do nome do autor ou do retratado se tenha desvanecido com a passagem do tempo, mas é incompreensível que esta obra de arte, que nos oferece uma visão nova – e de certo modo surpreendente – de Marcos Portugal, tenha estado no olvido durante quase dois séculos.

Um novo retrato de Marcos Portugal — glosas