Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


24-06-2015

A origem das tropas militares portuguesas


Um dos maiores problemas que um genealogista encontra ao lidar com registros dos séculos passados, como os dos séculos XVIII e XIX, mas também até mesmo com alguns do início do século XX, é a profusão e generalidade dos títulos e postos militares que recebiam os nossos antepassados. 

Havia Capitão-Mor e havia Capitão-Mor, havia Coronel e havia Coronel, havia Mestre de Campo e havia Mestre de Campo, havia Tenente-Coronel e havia Tenente-Coronel, havia Sargento-Mor e havia Sargento-Mor, havia Capitão e havia Capitão, havia Tenente e havia Tenente, havia Alferes e havia Alferes, etc. , etc. e ficamos sem entender o significado desses títulos e postos.  

 Seriam todos esses titulares oficiais do Exército? Mas será que havia um Exército? E o que eram as Tropas Pagas? E o que eram os Dragões? E o que eram os Auxiliares? E o que eram as Milícias? 

E o que eram as Ordenanças? E o que era a Guarda Nacional? E o que eram os Pedestres? E o que eram Caçadores? E o que eram ... ? Essas são perguntas para as quais temos pouca ou nenhuma resposta, porque a maioria das pessoas faz até mesmo questão absoluta de ignorar o significado desses títulos e postos, julgando que eles não tem importância, que esclarecem pouco ou nada sobre a pessoa titulada, opinião essa que se constituí em um redondo engano e atitude essa conformista e nada produtiva.  

Nossos cultissimos leitores vão encontrar aqui uma explicação para todos esses títulos dos nossos avós, bisavós, trisavós, etc., e, dependendo da época em que esses avós viveram, vão poder identificar, perfeitamente, a que tipo de organização militar pertenciam eles. Não é interessante? É claro que é, principalmente porque, sabendo a que organização militar pertenceu o seu avô, o genealogista poderá procurar os documentos militares existentes, em diversos arquivos, com maior precisão. Vale dizer, se o seu avô tinha um título militar, e você sabe a que organização militar ele pertencia, suas chances de encontrar os documentos dele aumentam de um fator muito alto. Caso contrário, se você não sabe o que significa o posto de seu avô, você não vai saber onde procurar e, se tentar encontrar alguma coisa a respeito, vai andar de Seca a Meca, vai quebrar a sua cabeça, e, sendo muito baixas ou nulas as suas chances de encontrar qualquer coisa, ficará com as mãos vazias, isso é, você vai fracassar ...  

A origem das tropas militares portuguesas remonta às guerras de libertação da Península Ibérica do jugo dos "infiéis" mouros. As raízes mais profundas todavia remontam à Cavalaria, na idade média. Não se pode dizer exatamente se as tropas de Cavalaria eram Exércitos ou Milícias, pois não havia uma nítida distinção. Para se conhecer a evolução que houve na formação das tropas portuguesas, deve-se recorrer à legislação fundamental que inclui: 1. "Regimento", de 07/ago/1549; 2. "Lei de Armas", de 09/dez/1569; 3. "Regimento de Ordenanças", de 10/dez/1570; e 4. "Provisão de Ordenanças", de 15/mai/1574. Além disso, mais a legislação pertinente a cada uma das organizações que serão descritas, parte da qual será citada no texto desse artigo.  

Em Portugal, até o início do século XVI não havia uma distinção clara entre Exércitos, Milícias ou Ordenanças, pois as tropas eram formadas "ad hoc" para a defesa e geralmente dissolvidas depois de passada a ameaça constituída pelo inimigo, sendo geralmente pagas, isso é, com percepção de "soldo". As principais características dos Exércitos são o profissionalismo e a permanência, o que implica haver um quadro de carreira e pagamento de salários, a "soldada" ou "soldo". Mas houve Ordenanças formadas de mercenários estrangeiros, ou seja, profissionais da guerra, portanto pagos com salários, com características de Milícias (e até mesmo alguma de Exército). Essas Ordenanças não tiveram muita duração todavia.  

 Mais tarde as Ordenanças e Milícias vieram a perder seu caráter de tropa temporária, e passaram a ser permanentes, com quadro de carreira, todavia, sem remuneração, isso é, sem soldos, exceto quando mobilizadas e deslocadas para a ação efetiva. Havia uma conotação de "honorabilidade" nas Ordenanças e Milícias, que gratificava seus membros. Essa conotação "honorífica" vem confirmar a origem comum das Milícias (e Ordenanças) e das Ordens Militares e Honoríficas, nas tropas ou Ordens de Cavalaria medievais. 

 

As primeiras tropas a serem explicitamente designadas pelo seu nome, em Portugal, foram as Ordenanças, criadas pelo Alvará Régio de 08/jan/1508, do rei Dom Manuel, que as denominou "Gente da Ordenança das Vinte Lanças da Guarda", sendo constituídas de mercenários estrangeiros, portanto, profissionais pagos. Não tinha ainda sua característica de permanência, embora possa ter durado muitos anos.  
 Pelo "Regimento" de 07/ago/1549, do rei Dom João III, as Ordenanças foram reestruturadas. Somente em 1569, no reinado de Dom Sebastião, foi criado o cargo de "Capitão-Mor das Ordenanças de Lisboa" e todos os moradores (homens) válidos foram arrolados compulsoriamente, tendo sido formadas 20 Companhias a pé (Infantaria) e uma (1) Companhia de Cavalaria. Não se pagavam salários a essas tropas civís. Era uma Milícia Civil.  
 Ainda mais, pela "Lei de Armas", de 09/dez/1569, Dom Sebastião estendeu a todo o reino a instituição das Ordenanças, que inicialmente havia sido estabelecida somente para Lisboa. Todos os homens entre os 20 e os 65 anos e válidos estavam convocados automática e permanentemente. Estava estabelecido o princípio da convocação universal de todos os cidadãos para a defesa do país. Em princípio só ficavam fora das Ordenanças os sacerdotes, magistrados e outros funcionários graduados do governo, ou pessoas doentes e deficientes físicos ou mentais. A Lei de Armas determinava que cada fidalgo, cavaleiro, escudeiro ou assemelhado deveria participar da Ordenança com uma determinada quantidade de recursos e equipamentos, dependendo da sua renda, conforme consta do quadro 2. 

QUADRO 2 - EQUIPAMENTOS DE FIDALGOS - LEI DE ARMAS - 1569

EQUIPAMENTO 

RENDA 

CAVALO 

ARCABUZEIRO 

EQUIPAMENTO 

até 200$ rs. 

até 400$ rs. 

até 800$ rs. 

até 1:500$ rs. 

 Para aqueles que não fossem fidalgos, cavaleiros, escudeiros e assemelhados, isso é, para as pessoas comuns, o equipamento que teriam que possuir era também proporcional à sua renda, como mostra o quadro 3. 

 

UADRO 3 - EQUIPAMENTOS DE PESSOAS COMUNS - LEI DE ARMAS - 1569

EQUIPAMENTO 

RENDA 

A [1] 

Eg [2] 

B [3] 

L [4] 

P [5] 

Ed [6] 

C [7] 

201$-250$ rs.  OU    OU 
151$-200$ rs.  OU      OU 
101$-150$ rs.  OU         
51$-100$ rs.    OU       
21$- 50$ rs.          OU   

 NOTAS: [1] Arcabuz; [2] Espingarda; [3] Besta; [4] Lança; [5] Pique; [6] Espada; e [7] Capacete.  
 EXEMPLOS: 1. Na primeira linha, renda de 201$-250$ rs., leia-se cada "X" como o equipamento básico, acompanhado do que for marcado com "E", isso é, "arcabuz, lança E espada, mais capacete". Alternativamente, o equipamento pode ser: "arcabuz OU espingarda, lança OU pique E espada, mais capacete". 2. Na última linha, renda de 21$- 50$ rs., o equipamento básico, marcado com o "X' é a "besta". Alternativa: "besta OU espada".  

 

Em 10/dez/1570, o mesmo Dom Sebastião, publicou o "Regimento das Ordenanças", alterando os limites de idade da convocação dos homens válidos para dos 18 aos 60 anos. As Ordenanças se tornaram mais jovens. Em 15/mai/1574, o mesmo rei Dom Sebastião edita uma "Provisão de Ordenanças", com novas instruções.  
 No Brasil, as Ordenanças eram organizadas em cada Vila ou Cidade, aí se incluindo seus Arraiais e Povoados, sendo seus comandantes responsáveis diretos pela defesa local, inicialmente escolhidos pelas Câmaras, tinham o título de Capitão-Mor, posto que corresponde hoje aproximadamente ao de "Coronel". Seu substituto imediato era o Sargento-Mor, ou Sargento-Mayor, de que se originou o atual posto de "Major". Mais tarde, a partir de 1709, ambos os postos passaram a ser por nomeação privativa do Governador e Capitão General.  
 Abaixo desses oficiais, as tropas eram organizadas em "Companhias". Onde não era possível formar uma Companhia de Ordenanças, uma unidade menor, chamada de "Bandeira" de Ordenanças, era constituída. As Bandeiras que desbravaram o território brasileiro, em particular o de Minas Gerais, eram unidades desse tipo. Eram, portanto, organizações militares. É uma grande bobagem e enorme estultice, dizer que seu nome deriva do fato de marcharem com uma bandeira.  
 Inicialmente, as tropas de Ordenanças eram formadas pelo Capitão-Mor de Ordenança, juntamente com o Alcaide-Mor ou Juiz Ordinário da Câmara, cargo que corresponde aproximadamente, ao do nosso atual "Prefeito". Cada "Companhia de Ordenanças" tinha um Capitão de Companhia, como comandante, e como sub-comandante um Alferes, sendo formada por 10 "Esquadras" de 25 Soldados, cada uma comandada por um Cabo (de Esquadra), o que dava um efetivo de 250 Soldados, não se incluindo nesse número os Oficiais. 

 

 

 Inicialmente, na colônia do Brasil, os postos de Capitão (de Companhia), Alferes, Sargento e Cabo eram providos por eleição, até que o Alvará Régio de 18/out/1709 acabou com esse processo, transferindo para o Governador e Capitão General (da Capitania), a escolha e nomeação tanto do Capitão-Mor e Sargento-Mor, como dos demais, para evitar as fraudes freqüentes, resultado da luta pelo poder entre as oligarquias locais.  
 A hierarquia dos postos militares, dentro de uma Companhia de Ordenanças, do posto mais alto para o mais baixo, é mostrada no quadro 4.

QUADRO 4 - HIERARQUIA DOS POSTOS DENTRO DE UMA COMPANHIA

HIERARQUIA 

POSTO 

Capitão (de Companhia) 

Alferes 

Sargento 

Cabo

Soldado 

 

 

Haviam ainda funções não militares, desempenhadas por civis, como as de Meirinho e Escrivão, mas que tinham uma equiparação com os Oficiais de nível inferior. Os Oficiais de uma Companhia de Ordenanças formavam o seu "Estado Maior" e se dividiam em dois grupos: Oficiais de Patente e Oficiais Inferiores.  
 O nome de "Oficiais de Patente" deriva do fato de esses Oficiais serem nomeados através de "Carta Patente" assinada pelo rei de Portugal ou autoridade competente, com poder delegado pelo mesmo, o que não ocorre com os "Oficiais Inferiores" ou "Oficiais Subalternos". A composição dos quadros de uma Companhia de Ordenança, destacando seu Estado Maior, e incluindo as funções civis, se encontra na quadro 5. 

 

QUADRO 5 - COMPOSIÇÃO DE UMA COMPANHIA DE ORDENANÇAS

COMPANHIA DE ORDENANÇAS 
  Oficiais de  1 Capitão (de Companhia) 
Estado  Patente  1 Alferes 
   
Maior  Oficiais  1 Sargento 
  Inferiores  1 Meirinho 
    1 Escrivão 
 
Tropa  10 Esquadras 
ESQUADRA 
Oficiais Inferiores  1 Cabo de Esquadra 

 Tropa 
25 Soldados 

 

 Uma segunda forma de ver a composição de uma Companhia de Ordenanças, incluindo-se os Cabos de Esquadra entre os Oficiais Inferiores do Estado Maior da Companhia, está no quadro 6. 

 

QUADRO 6 - COMPOSIÇÃO (2ª) DE UMA COMPANHIA DE ORDENANÇAS

COMPANHIA DE ORDENANÇAS 
  Oficiais de  1 Capitão (de Companhia) 
Estado  Patente  1 Alferes 
   
Maior  Oficiais  1 Sargento 
  Inferiores  1 Meirinho 
    1 Escrivão 
    10 Cabos de Esquadra 
 
Tropa  250 Soldados (10 esquadras × 25 soldados) 

 

 O organograma completo de uma Companhia de Ordenança é mostrado na figura 2.

 

 

Posteriormente o número de Soldados de uma Companhia foi reduzido para 60 homens, o que geralmente correspondia a quatro (4) Esquadras de 15 Soldados. As Companhias de Ordenanças, onde isso fosse possível, eram reunidas em unidades maiores sob a denominação de "Terço de Ordenanças". Cada Terço de Ordenança era composto de quatro (4) Companhias, o equivalente a um efetivo de 1.000 Soldados. Esse efetivo era exatamente "um terço" (1/3) do efetivo da unidade superior, o "Regimento de Ordenanças", que tinha 3.000 Soldados.

 

 A designação de Regimento e Terço se originou na organização das tropas da Alemanha, entre 1550 e 1650, em que foi adotada. Na Espanha, o Terço tinha 10 Companhias, ou seja, 2.500 Soldados. A estrutura do Terço espanhol, de 10 Companhias, é mostrado na figura 4.

 O Estado Maior do Terço de Ordenança, já no início do século XVIII se compunha de um (1) Capitão-Mor, comandante, de um (1) Sargento-Mor, ou Sargento-Mayor, e de um (1) Ajudante do Sargento Mor, além de Oficiais Inferiores. Essa composição é esboçada no quadro 7. 

QUADRO 7 - COMPOSIÇÃO DO TERÇO DE ORDENANÇAS

TERÇO DE ORDENANÇAS 
Estado  Oficiais de  1 Capitão-Mor 
Maior  Patente  1 Sargento-Mor (ou Sargento-Mayor) 
    1 Ajudante do Sargento-Mor 
 
Tropa  4 Companhias 

 

 O posto de Capitão-Mor corresponde aproximadamente ao atual posto de "Coronel", enquanto o posto de Sargento-Mayor se transformou no atual posto de "Major". O posto de Ajudante corresponde aproximadamente, nas organizações militares de hoje, a "Capitão" (com a função de "Ajudante" de Companhia ou Batalhão).  
 Somente no século XVIII a legislação de Ordenanças seria revista, por Dom João V, através da Lei de 18/out/1709, estabelecendo o mecanismo de eleição de Oficiais. Haveria eleições, para a escolha de Capitão-Mor, Sargento-Mor e Capitães (de Companhia). Esse mecanismo é esboçado no quadro 8.  
 Outras leis referentes às Ordenanças foram editadas a primeira em 21/abr/1739, estabelecendo o provimento integral dos postos das Ordenanças pelo Governador e Capitão General, assim como determinando que localidades marítimas deveriam ter também Terços de Auxiliares, e outra em 12/dez/1749, tornando o cargo de Capitão-Mor vitalício, em lugar de ser trienal.  
 Em 30/abr/1758 foi editada a "Provisão de Ordenanças", extinguindo os cargos civis de Meirinhos e Escrivães das Companhias, passando suas funções para dois Sargentos. Assim todas as funções da Companhia passaram a ser exercidas exclusivamente por militares.  
 No Brasil as tropas de Ordenanças entraram em progressiva decadência, até sofrerem seu primeiro grande golpe com a extinção do cargo de "Capitão-Mor das Ordenanças" pela Lei de 15/agosto/1827, quando ficaram subordinadas aos Juízes de Paz. O golpe de misericórdia foi desfechado com a sua extinção, pela Lei de 18/jul/1831, e substituição pelo "Corpo de Guardas Municipais Voluntários" ou "Guarda Municipal Permanente", a pé ou a cavalo, criado em 09/out/1831.  
A instrução das tropas de Ordenanças era realizada nos domingos e dias santos de guarda, tendo todos que se reunir ao repique do sino da igreja local. Para os arcabuzeiros, piqueiros e besteiros o treinamento incluía prática de tiro ao alvo. Havia uma formatura para inspeção anual em 29 de outubro, dia de São Miguel Arcanjo. 

QUADRO 8 - PROCESSO DE PREENCHIMENTO DOS POSTOS DE ORDENANÇAS

POSTO  SELEÇÃO E NOMEAÇÃO  CONFIRMAÇÃO 
Capitão-Mor  Oficiais da Câmara e Corregedor ou Provedor indicavam três (3) pessoas "da melhor nobreza e cristandade" para o Governador e Capitão General sugerir ao Rei.  Carta Patente do Conselho de Guerra [*]. 
Sargento-Mor  Eleição por camaristas, Alcaide-Mor, Donatário e Capitão-Mor.  idem. 
Capitão  idem.  idem. 
Alferes Escolhido pelo Capitão, aprovado pelo Capitão-Mor e confirmado pelo Governador das Armas, em recurso.  idem. 
Sargento  idem. 
Ajudante  Escolhido e nomeado pelo Capitão-Mor.  Carta Patente do Governador. 

NOTA: [*] - substituiu a nomeação por provisão real.  
 

Cada Capitão-Mor de Ordenanças tinha que lançar em um livro especial a relação de habitantes do seu Termo, constituindo-se em um verdadeiro "Recenseamento de Ordenanças", onde constavam os nomes dos cabeças de casal, respectivas esposas, filhos e descrição de bens. Esses documentos, infelizmente desaparecidos na sua maioria, são importantíssimas fontes para a História e a Genealogia. 

 

FILHO, Jorge da Cunha Pereira, historiador e geneologista  in Tropas militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e XIX. In: Boletim do Projeto: Pesquisa Genealógica Sobre as Origens da Família Cunha Pereira. Ano 03, nº. 12, 01/mar/1998

 

 

adaptado de http://buratto.org/gens/gn_tropas.html