28-11-2004 OS PRIMÓRDIOS DO GALAICO-PORTUGUÊS
NOTA PRÉVIA
Gostaria de ter documentos para exibir, factos para apresentar, livros para citar. Hélàs! Não tenho.
Tudo o que possuo são umas quantas conjecturas com que me entretenho. E uma analogia entre linguagem e moeda, as únicas criações verdadeiramente humanas - uma analogia que é especialmente forte na Europa, a partir do sec. X. Passo a conjecturar:
Não creio que se possa falar em línguas, pelo menos com o alcance que hoje se atribui ao conceito, no dealbar do 2º milénio. Na Península Ibérica, por exemplo, deveria haver, quanto muito, falares agrupáveis por famílias que resultavam da hibridação do latim (e do árabe) com dialectos indígenas (estes também de diversas origens), pontuados por palavras e expressões dos sucessivos ocupantes germânicos (sobretudo, visigodos e suevos). Pelo menos, foi isto que o tempo nos legou - embora surpreenda a ausência quase total do hebraico/aramaico.
Estes falares mal cobririam o necessário para gerar e manter organizações sociais rudimentares; teriam um alcance meramente local; seriam fácilmente entendidos por populações vizinhas; mas, à distância de uns poucos dias de viagem, entender e ser entendido já se revelaria difícil. Daí que clérigos (regulares e seculares) e notários (onde os havia) continuassem a cultivar o latim. Àparte os comerciantes de longa viagem, eram eles que, por imperativo dos respectivos múnus, ou como escolares, deambulavam por territórios mais amplos e sentiam a necessidade de serem entendidos por próximos e distantes, no dia presente e nos dias vindouros. O latim falado era, pois, a língua veícular usada, apenas, por aqueles que não ficavam confinados ao local onde tinham nascido, ou para onde o destino os tinha empurrado. O latim escrito, esse, continuava a ser o que sempre fora - uma língua diplomática (então com pouco uso) e litúrgica.
Nos reinos cristãos do norte peninsular, não é difícil adivinhar um mosaico de falares que se vão diferenciando com a distância. Antes de Fernando Magno, talvez se esbocem já as primeiras afinidades entre vernáculos, a deixar perceber, como trilhos, por onde passavam relacionamentos e antagonismos. No restante território, onde o Islão dominava, o árabe era, à vez, a língua diplomática, da administração, da cultura e do poder. As preces, cada nação rezava-as na sua própria língua litúrgica - e era nela que ia escrevendo, também, as suas reflexões religiosas e algumas crónicas, mas o árabe ganhava terreno na escrita. Tal como a norte, porém, na família, nas actividades correntes, na vizinhança próxima, nos círculos de informalidade, usava-se só o falar local.
Algo de semelhante se passava, ao tempo, com a moeda. Aos falares locais correspondiam as moedas quase-convencionais (por terem diminuto valor intrínseco) - logo desprezadas a poucos dias de jornada. Para o comércio à distância, para a recompensa ou para o resgate guardavam-se moedas de ouro (e, em menor proporção, as de prata), cunhadas quase sempre no Al-Andaluz (morabitinos, maravedis) ou importadas (besantes), em cujo valor mercantil se confiava (como se confiava no latim e no árabe para o valor simbólico da palavra) - e que todos compreendiam e aceitavam (porventura até mais do que às línguas veículares). É interessante notar que com a chegada da revolução clunicense e, mais tarde, com os díscipulos de S. Bernardo, a ideia da salvação individual deu aos metais preciosos uma nova utilidade, ainda como reserva de valor, mas agora para pôr a alma a bom recato. Tal como deu ao latim uma difusão pelo mundo profano que até então não conhecia. A magnificência dos templos românicos, a riqueza dos mosteiros regulares e dos livros de orações começaram assim.
Creio que é neste quadro que começam a esboçar-se famílias de falares cristãos: a noroeste, o galaico; no topo norte, o leonês; ao longo do Ebro, o castelhano; para as faldas pirenaicas, o navarro-aragonês e o catalão, com fortes influências das línguas d'ouil e d'oc; mantendo-se o vasco, muito mais antigo, mas cujo território estaria, pela maior parte, integrado na taifa de Zaragoza. Ao tempo de Fernando Magno e, mais tarde, do seu filho Garcia, rei da Galiza, no condado portucalense circulariam falares galaicos, a ocidente, e leoneses, na região nordeste, para lá do Marão (onde hoje ainda resiste o mirandês). A desconfiança das grandes famílias portucalenses do ocidente relativamente aos "Braganções" tinha, aliás, razões políticas fundas e bem concretas, mas a diferença no falar também deveria contribuír para essa suspeição. Para sul do Douro, o condado de Coimbra, onde era enorme a influência moçárabe, deveria estar culturalmente mais próximo do Al-Andalus (e das cidades comerciais como Lisboa, Santarém e Évora) do que dos rudes portucalenses. Para o interior, em Viseu, Alfaiates (historicamente tão importante por conhecer, havia muito, uma organização social estruturada em torno de cavaleiros vilãos) os falares deveriam ser ainda mais fragmentados, porque as populações eram esparsas; o comércio de longa viagem, uma raridade; e só contavam com elas-próprias desde a derrocada do império visigótico.
A reviravolta política que se dá na Península com Fernando Magno, em boa verdade, parece ter começado muito antes, logo quando Afonso II, o Casto (finais do sec. IX), entra em contacto com a corte carolíngia, da qual se considerou, alías, vassalo. Dessa iniciativa surge Compostela como um santuário de peregrinação do cristianismo proto-feudal que crescia para lá dos Pirinéus. Ora, os que peregrinavam a Compostela traziam com eles: (i) nas suas bolsas, moedas de ouro e de prata e dádivas em metais preciosos facilmente amoedaveis; (ii) nas suas mentes, outros falares e novas variantes do latim escrito. As populações locais aproveitaram esta lenta afluência de pessoas e de dinheiro para aumentarem as trocas monetárias e atraírem comerciantes de longa viagem (daí o primeiro surto de feiras ao longo dos caminhos de Santiago), para aperfeiçoarem as exacções (portagens, hospedagens, etc.) - e para enriquecerem os seus falares. A peregrinação a locais distantes (não só a Compostela) pelas populações de toda a Península (muitos peregrinos a Compostela, por exemplo, vinham de sul, da terra-de-ninguém, do Al-Andalus e do Al-Garb, ou de oriente, de Zaragoza e dos condados pirenaicos) contribuía assim para uma maior miscigenação dos falares peninsulares que, importando termos de uns e de outros, se iam aproximando, amalgamando e indiferenciando.
É no tempo de Fernando Magno, e com a acção dele, que tudo se transforma. Os caminhos de Santiago tornam-se muito mais concorridos, em consequência das mudanças que a Europa medieval vinha a conhecer desde havia poucas décadas: (i) a súbita aceleração do crescimento populacional; (ii) o fim temporário da penúria de metais para amoedar, graças à descoberta de novas minas no norte transalpino, na Sardenha e na península itálica; (iii) um maior equilíbrio no balanço dos pagamentos com o Norte de África e o extremo leste mediterrânico, graças à exportação de escravos capturados, em números crescentes, junto ao Báltico e nas planícies orientais. É porém a fragilidade das taifas mussulmanas (após a dissolução do califado de Córdova, em 1031) que lhe dá a oportunidade, não só de fazer razias (como vários dos seus antecessores já tinham feito, aliás), mas de se intrometer directamente e de forma continuada nas convulsões do Al-Andalus, "vendendo" protecção militar e cobrando párias (tributos). De um momento para o outro, o reino cristão do norte podia permitir-se pagar lealdades e premiar serviços, sem estar condicionado pelas contingências do saque. Tinha ouro em abundância nunca vista até então por essas latitudes, que lhe afluía agora do oriente (peregrinos) e do sul (párias e razias). Os vínculos vassálicos acentuavam-se, embora fossem já evidentes nos povos astúres desde antes de Pelágio e na sociedade visigótica da qual, provavelmente, ainda restariam alguns vestígios. A credibilidade da pressão militar sobre os principados mussulmanos dependia da estabilidade político-militar nos territórios confinantes - por isso, era necessário nomear comes (como para Coímbra o conde Sesinando Davides, um judeu oriundo do Al-Andalus) e criar um aparelho burocrático-militar que projectasse territorialmente a corte leonesa, como nunca anteriormente. As tendências feudalizantes - à imagem dos carolíngeos, em que o rei era, de direito e de facto, o suserano dos suseranos - começaram a dar forma a uma nova sociedade, onde cada um, por mais humilde que fosse, sentia a presença do poder palatino. É provável que esta pressão feudalizante fosse limando as arestas dos falares locais, até porque a generalidade dos comes e das suas gentes era estranha às terras que passava a administrar. Por último, as incursões de Al-Mansur, que culminaram com a destruição de Compostela (e a recordação das incursões de povos normandos, aproveitando a vulnerabilidade das rias galegas), devem ter acentuado nos povos do noroeste peninsular uma sensação de insegurança que só a sombra de um rei poderoso faria desaparecer.
Morto Fernando Magno, a sua herança revela muito sobre a mentalidade feudal e a realidade social das suas possessões. Estas foram divididas como um qualquer património familiar: (i) ao primogénito Sancho coube o reino de Leão, centro da corte fernandina (nomeadamente, por ser daí que irradiava a política de extorquir tributos às taifas islâmicas) e berço da sua linhagem; (ii) ao filho mais novo, Garcia, o reino da Galiza - reino menos pela importância estratégica do que pelo prestígio religioso de Compostela, e pela riqueza que algumas linhagens locais tinham, entretanto, conseguido amealhar à sombra do santuário; (iii) ao filho segundo, Afonso, o condado de Castela - território instável, mas com enorme valor estratégico (por ser o grande produtor cerealífero a norte do Douro; por defender o primeiro troço dos caminhos de Santiago; por ser uma das vias mais expostas às aceifas mussulmanas; e por ser uma zona que outros príncipes cristãos disputavam). Estes diferentes qualificativos (reinos, condados) que não tinham correspondência com a dimensão geográfica, o peso demográfico ou a importância económica dos respectivos territórios, hoje, pode surpreender-nos. Na realidade, reflectiam as necessidades do exercício do poder: territórios mais pacificados e que formavam como que clusters de relações sociais e vassálicas podiam ser administrados de forma mais descentralizada - ter o seu rex que agia com a maior latitude, desde que não pusesse em causa a segurança ou a política do suserano; territórios sujeitos a ameaça militar permanente tinham de ficar na dependência directa do suserano e dos seus comes. As fronteiras entre estes três territórios eram certamente muito difusas. Só por uma coisa poderia um viajante saber que tinha cruzado uma dessas fronteiras invisíveis - pelos falares que passava a encontrar. Politicamente, cada uma destas três pirâmides de poder vassálico, tendo um dos filhos de Fernando Magno como vértice, projectava no terreno uma determinada sombra - era esse o território que ele poderia chamar seu. As conquistas territoriais e o reforço do poder andavam, assim, de mãos dadas - e todo o poder era uma questão de sombras projectadas: pelo suserano, pela igreja (secular e regular) ou pela pirâmide de relações vassálicas.
Por essa época, o condado portucalense encontrava-se na dependência directa do rei de Leão, passado que estava um período de revoltas conduzidas pela linhagem condal de Nuno Mendes, derrotada nos recontros de Pedroso e de Ervas Tenras. Este condado não seria homogéneo quanto a falares: a ocidente do Marão predominavam os galaicos; a oriente, os leoneses. A derrota das prosápias locais tinha custado a este condado, não só uma relativa autonomia administrativa (que pouco ou nada diria à generalidade da população), mas - e isto todos sentiam na pele - a subordinação vassálica aos condes galegos, certamente por terem sido estes os instrumentos do poder palatino nas batalhas que cortaram cerce uma revolta de que hoje ainda desconhecemos as causas.
Sabe-se como Afonso acabou por ficar conhecido na história, depois de se ter visto livre dos seus dois irmãos, à primeira vista mais bafejados pela sorte nas partilhas. Entronizado, Afonso VI seguiu a estratégia do pai, Fernado Magno, em praticamente todos os azimutes e, designadamente, no jogo de pressão/protecção/exacção que travava com Sevilha. E fazia-o em bem melhor posição, uma vez que, já rei, recebera em herança a prestigiosa taifa de Toledo, onde havia sido generosamente acolhido quando derrotado por Sancho, e donde continuou a intrigar até que a morte violenta do seu irmão primogénito lhe franqueou o trono de Leão. E é precisamente em Toledo que viria a cometer alguns dos maiores erros do seu reinado. Cedendo às pressões de Clairvaux: entregou a sé da cidade, e o primado das Espanhas, a um monge branco pouco dado à tolerância e à diplomacia; e destruiu a mesquita que jurara proteger e respeitar, para sobre ela erigir uma igreja. A destruição da mesquita tornou-o ímpio aos olhos dos seus "protegidos" mussulmanos que, de pronto, lhe retiveram as párias (menos receita) e iniciaram escaramuças (mais despesa). Por outro lado, a reconstituição do primado das Espanhas, e a entrega da cátedra a um franco, pôs em polvorosa Compostela e, sobretudo, o aguerrido bispo Diego Xelmirez. Instigados por este prelado de ambição desmedida os grandes magnatas galegos mantiveram-se em permanente conflito com Afonso VI, sob o pretexto de quererem um rei próprio que sucedesse ao defunto Garcia. A ameaça mussulmana parecia afastada de vez, e o medo, esse motor de coesões e catalizador de interesses comuns, já não estava lá para fazer pensar duas vezes. Além disso, sob Afonso VI, o centro de gravidade política deslocara-se para oriente (Castela) e para sul (Toledo), o que só podia desagradar a quem se habituara a ser, pela sua riqueza, o círculo próximo do trono. E dirimir conflitos, ou lutar por privilégios, junto de um rei distante, perante uma corte palatina estranha, e num falar que não era o próprio, só poderia ser visto como uma desvantagem, uma posição de inferioridade. O reino de Portugal nasceu deste conflito - numa época em que ainda se exprimia por dois tipos de falares suficientemente diferentes para gerarem as imagens opostas dos "nós" e dos "eles": o galaico e o leonês.
A luta que os ricos-homens galegos, e os bispos de Compostela (também ele um príncipe), travavam com o poder régio não terminou com a morte de Afonso VI. Pelo contrário, permaneceu latente durante todo o reinado de Urraca e, mais tarde, de seu filho Afonso VII. A entrega dos condados portucalense e conimbricense a Tareja, meia irmã de Urraca, ainda acirrou mais os ânimos, porque Tareja alimentava ambições que estes territórios periféricos nunca poderiam satisfazer-lhe: a luta política desenrolava-se mais a norte, entre a Galiza e Castela. O prémio tanto poderia ser o reino da Galiza, trampolim de excepção para o trono leonês-castelhano, como o próprio trono. O facto de o seu marido, Henrique, ser o condestabre de Urraca, não demovia Tareja, que apoiava declaradamente a facção dos condes galaicos - com os quais, aliás, privava. Tanto mais que Urraca, morto o seu primeiro marido Raimundo, se voltara a casar com Afonso, o Batalhador, rei de Aragão - o que fizera deslocar definitivamente para Castela, e para a região do Nejar, o centro da actividade político-militar entre os reinos cristãos penínsulares. Estes planos de Tareja não eram vistos com bons olhos pela nobreza portucalense. E compreende-se porquê: estando sujeita a vínculos de vassalagem para com Tareja ou os grandes condes galegos - teriam de assistir aos seus senhores na guerra; se tudo corresse de feição a Tareja e aos seus aliados - pouco receberiam, permanecendo vassalos; se a facção galega fosse derrotada - a punição do rei, a perda de poderes e haveres, talvez, a perda da própria vida, não se fariam esperar. Em suma, a nobreza portucalense tinha tudo a perder e quase nada a ganhar na peça que Tareja ia cuidadosamente encenando. O recontro de S. Mamede (1128) é o epílogo desta oposição local as ambições políticas mais amplas da condessa. A demora dos "Braganções", vista como comportamento dúplice por quem não falava o mesmo falar e estava em apuros, é a esta luz perfeitamente compreensível. Os "Braganções" tinham um falar leonês porque se integravam na teia vassálica do reino de Leão - e ténues seriam os laços que os prendiam à facção galega, se é que esses laços alguma vez existiram. Por isso, tiveram de esperar pela decisão dos seus senhores leoneses e, em última análise, pela permissão de Afonso VII (Urraca já tinha morrido em 1126, aos 42 anos, de parto!) - certamente deliciado porque deste modo, e sem suportar custos, enfraquecia uma revolta que tanto o molestava na sua retaguarda.
É ainda a preocupação de acabar de vez com a rebelião galega (e com as pretensões do bispo de Compostela que davam à rebelião um animus ideológico) que levou Afonso VII a conferir ao seu primo Afonso Henriques o título de Rex. De uma penada quebrava os vínculos vassálicos que existiam entre as linhagens galegas e os nobres portucalenses; evitava que a revolta alastrasse às taifas tributárias, onde muitos homens da fronteira duriense teriam parentela; esvaziava qualquer possibilidade das hostes portucalenses, reforçadas pelos seus poderosos parentes do sul, sobretudo moçárabes, irem engossar o exército galego; enfim, conservava intactas as preciosas párias que lhe davam a vantagem decisiva nas disputas que ia mantendo, quer internamente, quer com Aragão. Naturalmente que não passava pela ideia de Afonso VII criar um reino concorrente, um reino igual - tanto mais que para melhor se impôr ao rei de Aragão, e às pressões transpirenaicas, começava a usar o título de imperador e a acalentar a pretensão (repescada dos antepassados visigóticos) de suceder no Império Romano do Ocidente. Um reino ao nível do reino da Galiza, e ao nível a que ele gostaria de reduzir o reino de Aragão depois de submeter as principais taifas mussulmanas, era até importante para reforçar o bom fundamento das suas pretensões imperiais junto de Roma. Sabe-se que Afonso Henriques, bem aconselhado (mas copiando uma acção diplomática já experimentada com sucesso em Aragão e Navarra), depois de cortar os vínculos vassálicos que prendiam o condado portucalense ao reino da Galiza, trocou as voltas a Afonso VII - provavelmente não tanto quanto os historiadores romanticos e nacionalistas quiseram crêr. Durante muito tempo, desde o episódio do cerco de Badajoz (então uma taifa tributária de Afonso VII) até finais do sec. XIII, os reis portugueses agiram sempre com a cautela de um rei-vassalo, não disputando os esteios do poder, embora não perdessem nenhuma oportuni-dade para, como D. Diniz, irem ratando nas possessões do seu suserano. Portugal separa-se, não do trono leonês (ocupado por quem se sentia castelhano), mas do reino da Galiza - e isso iria determinar a evolução da Galiza e dos falares galaicos durante os oito séculos seguintes. Primeiro, a tentativa de se assenhoriar das terras e honras galegas que haviam pertencido a sua mãe, mais tarde, o "desastre" de Badajoz, fizeram ver a Afonso Henriques e aos seus sucessores que lhes estava vedado expandirem-se para norte, ou seguir a estratégia de interferência e submissão, que era ainda a imagem de marca dos reis leoneses no Al-Andalus. Na Galiza, contariam com a resistência daqueles que tinham perdido para o reino português uma parte dos seus vassalos (e das terras e das gentes que estes últimos possuíam) - e que certamente tudo fariam para que não se reestabelecessem os vínculos vassálicos, agora em sentido inverso. Além de correrem sempre o risco de hostilizar o seu poderoso vizinho, rei da Galiza e suserano de todas as forças em confronto. Com a conquista de Badajoz, porém, Leão-e-Castela perderia muito mais que uma pequena taifa tributária e as correspondentes exacções: era a sua esfera de influência que ficava seriamente abalada - e com ela o grosso das receitas monetárias que sustentavam o trono; era o prestígio que se perdia e o temor que se deixava de inspirar; era o acesso aos estratégicos vales do Tejo (até Toledo) e do Guadalquivir (até Sevilha) que ficava franqueado; enfim, era um vizinho de menor estatura que passaria a reunir todos os ingredientes do poder, caso desenvolvesse a capacidade para isolar o norte cristão do sul mussulmano e dominar as partes central e sul da meseta. Os primeiros reis portugueses dedicaram-se, então, a agir de forma a não desencadear a ira de Leão-e-Castela: conquistavam às taifas territórios periféricos e cidades comerciais importantes, mas que não eram sede do poder político islâmico - uma estratégia que, na Península, só encontrava paralelo na expansão dos pequenos condados catalães. É mesmo bem possível que uma tal estratégia fosse, não só tolerada, mas incentivada pelo trono cada vez mais castelhano, que assim, sem incorrer em custos, via enfraquecer a capacidade de resistência daqueles que lhe pagavam as párias.
A consequência de tudo isto foi que a Galiza se tornou numa ilha sem contacto com o rico, mas cada vez mais enfraquecido, Al-Andalus, onde os reinos cristãos que a bloqueavam a sul e a oriente alicerçavam o seu poder. Distante das fontes do comércio, das economias próperas, das zonas por onde a moeda circulava abundantemente; distante do trono, cada vez mais voltado para sul e para leste; distante de tudo, mas suficientemente autónoma para não ser absorvida, como tinha acontecido, de facto, ao reino de Leão - a Galiza fechou-se sobre ela própria em relações vassálicas que raramente extravasavam o seu território, e a autonomia política permitiu-lhe manter intacta a família de falares galaicos, agora já simples variantes dialectais de um tronco comum que viria a ser designado galaico-português. A História penínsular, porém, deixara de passar por ali - e a Galiza reduzia-se lentamente a um santuário que atraía multidões. A emergência do galaico-português durante o sec. XIII revela que, de início, a Galiza parece ter aproveitado bem o clima de relativa paz (no contexto de uma Península em permanente turbulência) e a confluência das muitas culturas que acom-panhavam os peregrinos, pois o renascimento provençal fruticou aí com facilidade, quase com naturalidade. Por ironia do destino, o rei castelhano-leonês (Afonso X) que leva o galaico-português ao cume da vida cultural, é também o rei que, pelo seu mau governo, dá aso a um longo período de guerras civis de onde irá emergir o castelhano como a língua veícular nas Espanhas (e os Trastamaras com nova linhagem reinante). Desde então, e por muitos séculos o galaico-português não passará de um idioma popular, de âmbito regional, para lá do Minho.
O processo que eleva o castelhano a língua veícular nas Espanhas é exactamente o mesmo processo que torna o falar galaico no idioma do reino de Portugal, que aqui conserva o leonês na sua oralidade local (o mirandês) e que extingue os falares moçárabes: o da consolidação de uma monarquia feudal que não abria mão da justiça e do exercício do poder sobre gentes e território - a tensão permanente em que vivia não permitia outra atitude. Neste ponto retornam as semelhanças entre língua e moeda. Os reis chamavam a eles a cunhagem da moeda, onde obtinham enormes proveitos (receitas de senhoriagem, incluíndo a quebra da moeda) que a necessidade de mobilizar exércitos cada vez maiores já não dispensava. Os reis impunham uma língua única, para serem plenamente compreendidos, em tempo de paz e em tempo de guerra - e assim melhor obedecidos. Isto não significava que todos os que habitavam no reino utilizassem correntemente ou, no mínimo, dominassem essa língua comum - muitos continua-riam a usar os seus falares locais, agora reduzidos a dialectos ou simples variantes, apesar de conseguirem expressar-se na língua palatina; outros nasceriam e morreriam sem nunca entenderem uma palavra da língua que o poder adoptara. Nos círculos do trono e nas relações com os agentes do poder régio, porém, e com o latim remetido para a escrita diplomática, só a língua palatina contava. E é assim que o tronco comum galaico se estende por todo o reino de Portugal, para receber, séculos mais tarde, a designação de galaico-português.
A escrita do galaico-português, tal como a do castelhano, vai-se afastando progressivamente da grafia seguida pelo latim, mas estava longe de se encontrar uniformizada e estabilizada. Se assim era com a escrita, domínio por excelência dos letrados, como seria a diversidade da expressão oral? Enorme. Na evolução dos falares, as expressões locais resistem melhor à mudança e ao esquecimento, enquanto as expressões estranhas são mais facilmente acolhidas. Durante muito tempo ainda, os falares do reino português, principalmente no entre-Douro-e-Minho, em muito pouco se distinguirão daqueles usados mais a norte. E mesmo uma pessoa culta poderia escrever indiferentemente em castelhano ou em galaico-português (como, já no sec. XVII, D. Francisco Manoel de Melo, por exemplo).
É a restauração da monarquia portuguesa que leva a que se acentuem deliberadamente as diferenças de entoação relativamente à fala castelhana (as vogais com vários sons, os ditongos, uma sonoridade monocórdica, etc.). A imprensa, com a necessidade de colocar caracteres padronizados num espaço previamente delimitado faz o resto, através da escrita.
Muito embora quanto à linguagem talvez não se possa afirmar que seja uma criação exclusiva do Homem. A moeda é-o. Nada existe no mundo animal que se lhe equipare.
Judeus e judaízantes, chegaram cá na 1ª metade do sec. I, e tiveram desde então um apreciável peso social. Mas esta ausência pode revelar várias coisas: que os judeus não se estabeleceram muito a norte da linha Toledo/Coímbra, preferindo as terras a sul e sudeste e as cidades de comércio marítimo (o que parece ter acontecido); que eram rejeitados (o que aconteceu, de facto, durante a maior parte do império visigótico, mas não no longo período que vai do sec. VIII ao sec. XIV); ou que utilizavam o hebraico, apenas, em actos religiosos, mas não no seu dia-a-dia (o que parece ter acontecido também).
Esta atracção que o árabe, e a cultura islâmica, exercia era tão forte antes de o califado entrar em decadência (sec. XI) que levou a episódios de puro fundamentalismo latino-cristão (como o dos mártires de Córdova) e judaico (estes obviamente ausentes das crónicas cristãs, mas referenciados por cronistas islâmicos).
Pouco antes de Fernando Magno conquistar Viseu e Coímbra, sabe-se que as terras da actual Beira Interior eram dominadas por um aventureiro mullah, Al-Jiliqi, referência óbvia à sua proveniência galega. Na terra-de-ninguém (mas povoada) em que se tornara o miolo da Península Ibérica, entre os rios Douro, Tejo e Ebro, no exterior das cidades comerciais, a presença de soldados-de-fortuna que, quantas vezes, faziam a guerra e a pilhagem por conta própria, e se tornavam senhores locais, foi frequente. Gente que podia vir do norte (como al-Jiliqi), ou do sul (como os ibn-Marwan) - e dos quais se destaca Geraldo Geraldes, quase certamente um mozárabe com poucos escrúpulos e cujo sentido de lealdade deixava muito a desejar: ora participava em fossados de cristãos, ora lutava ao lado de mussulmanos, ora chefiava bandos formados indistintamente por uns e outros. Tanta iniciativa custou-lhe o pescoço, quando se encontrava a cumprir uma pena de desterro no Magreb.
Que, de um dia para outro, se via despojado de muitas dioceses sufragâneas (ficando assim privado das correspondentes tenças); apeado da posição de domínio espiritual que até então exercera sobre todos os cristãos da Península (com excepção talvez dos que viviam nos reinos, marcas e condados pirenaicos); e separado de Roma por um tão inesperado, quanto poderoso intermediário
Dois exemplos: o papiá e outros fósseis do português dos sec.s XVI a XVIII soam-nos, agora, a "espanhol"; o português falado no Brasil é facilmente compreendido por muitos de língua hispânica - mas o português de Portugal é-lhes totalmente incompreensível.
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