Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


20-12-2014

A nossa história Cristãos novos no Ceará / Our history New Christians in Ceará


Cristãos novos no Ceará

Our history   New Christians in Ceará

 

Foi levada ao teatro e a televisão uma peça de Dias Gomes, em forma de novela, explorando um tema interessante, o suposto inquérito inquisitorial de uma portuguesa residente no Brasil nos tempos coloniais. Esta história, vista no seu aspecto lendário, já foi aproveitada por diversos autores brasileiros, geralmente intelectuais paraibanos e pernambucanos, todos eles, como ocorre no caso mais recente, extrapolando elementos e fatos históricos, reais, cerca de duzentos anos além da data em que efetivamente ocorreram.

     Em “Branca Dias dos Apipucos” Pereira de Melo coloca-a na trama da Guerra dos Mascates, em 1710. Em “Céu dos trópicos”, Olavo Dantas conta outra versão da desdita da marrana rica e possuidora de tal quantidade de jóias e pratarias que ao ser perseguida, jogou toda a imensa fortuna em um açude das cercanias do Recife. Acrescentou depois Flávio Guerra a esta história, que as “águas do rio ficaram tão claras e límpidas como o metal que tragara”. Transformou-se em riacho da Prata o “Lago 2 irmãos”. J. J. de Abreu no “Livro de Branca Dias”, lançado na Paraíba, em 1905, fornece dados pessoais da heroína de sua novela afirmando até a data de seu nascimento, em 1734, na capital de seu estado, filha de Simão Dias e Maria Alves Dias. À fantasia do autor ajunta supostos pronunciamentos de Branca e uma sentença do Santo Ofício quando, na realidade, aquele tribunal malfadado já se encontava praticamente desativado. Acresce que Pombal já tinha, há dois anos, expulsado os jesuítas de seu Reino quando aparece o inaciano entregando a vítima ao desumano verdugo.

     Mais tarde, em 1922, Carlos Dias Fernandes publica “O algoz de Branca Dias” dando-a como de excepcional beleza delatada ao Santo Ofício pelo despeito de um franciscano repudiado pela judia.

     Todos terminam suas novelas, dramas e romances com Branca ardendo na fogueira lisboeta da Inquisição.

     Ainda outro paraibano, Ademar Vidal, volta, anos mais tarde a abordar romanescamente o caso, oferecendo até a data do horrendo suplício: 20 de março de 1761, na rua do Limoeiro, na capital lusitana.

     A história, porém, é outra. A revelação dos documentos da atuação do Santo Ofício no Brasil foi feita graças ao grande empenho de Capistrano de Abreu, que com sua extraordinária pertinácia conseguiu mandar copiar e divulgar grande parte dos códices pertinentes guardados na Torre do Tombo.

     Através desses importantes documentos ficamos conhecedores da realidade, afastando completamente a lenda e o folclore a respeito de Branca Dias.

     Ela existiu de fato e foi progenitora de muitos cearenses de hoje. Quando o Visitador Heitor Furtado de Mendonça chegou em Olinda em 1553, já, de muito, eram brancos os ossos da principal figura da novelesca história. Casada que fora com Jorge Fernandes, morava o casal em um engenho de açúcar, próximo de Olinda, onde, às escondidas, praticavam “judiarias”, isto é, comemoravam as datas sagradas da religião proscrita, reuniam-se num arremedo de sinagoga e faziam certo proselitismo. A família era grande, composta de oito filhas e dois filhos. As moças, algumas casaram bem, com cristãos velhos, apesar do estigma que conservavam de seu marranismo milenar.

     Inês, a mais velha, foi casada com Baltazar Leitão Cabral, de família ilustre, irmão de Bispo.

     Nas denunciações feitas após a publicação do édito e o prazo de 30 dias “da graça” em qualquer um dos habitantes da Nova Lusitânia poderia, sem maiores riscos acusar, delatar, denegrir a honra e a consideração alheia, muitos apareceram alí para contar ao Visitador fatos por eles testemunhados ou conhecidos. Algumas das incriminações feitas a Branca Dias haviam ocorrido há 34 ou mais anos. Joana Fernandes revelou que, com outras meninas, naqueles tempos distantes, frequentara a casa da judia, uma espécie de escola de artesanato, onde aprendiam a “coser e lavrar”. Ela e as pequenas companheiras espreitavam as atividades da casa, por trás das cortinas, por certo, em suas famílias suspeitada da prática da religião mosaica. Nessa ação tinham reparado que “guardavam o sábado” e que nesses dias vestiam roupas limpas, o que não faziam durante a semana. Nas 6as feiras havia um afã descomum das negras escravas limpando candeias, lavando louça e o jantar saia mais cedo. Descobriram até a existência de uma “toura”, prova cabal da prática do judaísmo. Este objeto tão revelador, em forma de rolo, contendo o Pentatêuco, leitura obrigatória dos daquela grei. Quando Joana falou ao Visitador nos hábitos alimentares da família, tocou no ponto básico das suspeitas. Os inquisidores nada mais necessitavam para a confirmação do prejulgamento. Eram judeus, continuavam assim, apesar de batizados, aparentemente contritos, externamente católicos romanos, mas que agora abjuravam também a nova e verdadeira Fé, observando, às escondidas os ritos desterrados. Mereciam o castigo mais violento como era de praxe a Inquisição proceder na correção desses hereges. Mas, quanto a Branca Dias, tornava-se difícil a refrega, porquanto ela e o marido já eram defuntos há muitos anos. Ele, revelara a viúva de Duarte Coelho, afastara o crucifixo que na hora da morte aquela senhora cristamente lhe achegara.

     O Santo Ofício tinha uma fórmula para esses casos. Já que eles não poderiam ser queimados em vida o seriam “em estátua”. Uma escultura de madeira representando a figura do transgressor preparada, e, com toda solenidade queimada em ato público como tal fora a própria vítima. E não faltava povo suficiente para encher a praça onde esse espetáculo fosse apresentado.

     Das filhas de Branca Dias, interessa-nos Inês, progenitora de muitos cearenses, especialmente os descendentes das famílias Holandas e Linhares de Sobral, Baturité e Cascavel.

     Uma moça, Maria de Paiva, filha única do casal Baltazar-Inês, casou com um ilústre varão pernambucano, o Capitão Agostinho de Holanda Vasconcelos, filho, neto e bisneto de barões e condes do Santo Império e ele próprio, dos da “governança” da terra.

     Apesar de todas as honrarias de seu marido, de seu pai e do tio Bispo, não escapou Maria de Paiva das malhas do Santo Ofício. Ela era, ninguém esquecia, neta de Branca Dias, a judaizante odiada por quanto olindense se dissesse honrado, bom e temente a Deus; e, pelo fato mesmo, “meia cristã nova” na despótica e escarniante matemática genética inquisitorial.

     A 7 de fevereiro de 1594 compareceu à Mesa, perante o Visitador, o lavrador Tomé Dias, enfatizando ser Maria de Paiva neta de Branca. Notara ele, em certas ocasiões em que frequentara a casa da olindense suspeita, que a mesa onde almoçavam ou jantavam nunca havia prato algum de peixes ou mariscos dos proibidos aos marranos. Teve a audácia de indagar o motivo de tal recusa e Maria alegava problemas digestivos. Mas, achava ele que a desculpa era apenas a preocupação de ocultar a prática dos ritos judaicos.

     Para se ter uma noção de o quanto chegava o receio de se pensar que um desses fatos chegasse ao conhecimento do Santo Ofício por outras vias apressavam-se aqueles que conviviam com os suspeitos em delatá-los. Tomé era casado com uma sobrinha de Maria de Paiva e comensal frequente de sua casa; e, ai dele se o Visitador recebesse denúncia de tal comportamento da tia por pessoas outras se não os da convivência da cristã nova. E foi muito prudente o sobrinho delator, porque logo mais chegava ao Convento onde “se aposentava” o Visitador, um francês, mercador, hóspede da véspera de Maria que também notara a indiferença de sua anfitriã para um opíparo prato de lampreias...

     É interessante rememorar tais fatos e, sobretudo, corrigir as deturpações que tem surgido na história de Branca Dias, aquela infortunada mulher que a incompreensão religiosa do tempo levara a alguns exagerados praticantes da Ordem de São Francisco a representarem-na, em painel em seu convento, com os pés de cabra para significar sua diabolização.

     Desde aquele primeiro ensaio de drama ou de tragédia extrapolado de Pernambuco para a Paraíba e completamente extemporâneo em sua versão apresentada na Televisão e no teatro brasileiro, vem se perpetuando uma falsidade histórica que nos interessa por ter como principal protagonista, uma pessoa de quem muitos de nós possuímos parcela de sangue a correr nas veias.

Por Vinícius Barros Leal. Publicado no Jornal O Povo, de Fortaleza, edição de 01/07/1979

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