A arte lusa é o resultado de uma herança multicultural- a cerâmica portuguesa
Margarida Castro
Interessante constatar que a cerâmica portuguesa revela as muitas influências dos povos orientais, passando pela China, porque esta cerâmica tem as suas mais profundas raízes nas culturas megalíticas de milénios que ocuparam o Ocidente da Península Ibérica. Quem se debruça sobre a olaria portuguesa encontra nela vestígios dos antepassados romanos, árabes, visigodos e celtas. Tanto os métodos de produção como os elementos decorativos e as próprias caraterísticas das formas e função dos objetos são testemunhos da sua origem. Já as citações de Garcia de Resende, Gil Vicente e Camões e dos cronistas da era de quinhentos atestam a evidência destes factos/fatos.
Viajando alguns séculos para trás, registramos uma cerâmica da Pérsia seljúcida com raízes no mundo islâmico e o belo poema, gravado numa taça com pé persa, do poeta Motanabbi, que morreu no ano 968 d.c.,. Também a cerâmica portuguesa tem muito desta herança.
A produção de cerâmica na Pérsia seljúcida concentrou-se essencialmente em dois grandes pólos, que eram também dois dos mais importantes centros urbanos nos finais do século XII e início do século XIII: caxã e ray, a capital dos seljúcidas (reinantes na pérsia entre 1038 e 1184), sendo as duas cidades responsáveis pelo grosso da produção da cerâmica de luxo, de brilho metálico e minai. A produção de cerâmica na Pérsia ascende ao século XI, fazendo-se herdeiros de uma tradição de produção de objetos luxuosos com raízes no mundo islâmico desde o século IX, produção que se desenvolveria de forma bastante significativa no Egipto fatimida, sendo provável que o apogeu da cerâmica iraniana dos inícios de duzentos se deva também à migração de ceramistas egípcios quando do declínio desta dinastia, entre os finais do século XI e a primeira metade do século XII. Certo é que uma das grandes referências para a produção cerâmica na pérsia, como em boa parte do mundo islâmico, continuou a ser a cerâmica chinesa, importada através dos portos do iémen e transportada pela península arábica para a bacia do mediterrâneo, a Pérsia e a Ásia central, com a sua porcelana fina e uma decoração em que o azul dos desenhos e o branco do fundo são dominantes. o desenvolvimento técnico que permitia pintar sob e sobre o vidrado mate contribuiu grandemente para o sucesso da cerâmica minai ou de esmalte em que cada peça constituía um precioso objecto de aparato. As peças eram sujeitas a um complexo processo de cozedura, uma primeira vez a temperaturas mais elevadas e uma segunda a temperaturas abaixo dos 600 graus, para permitir a fixação dos pigmentos mais frágeis, incluindo o ouro. A peça em análise, decorada predominante a azul e branco, mas contendo também pigmentos verdes, negro manganês e apontamentos de dourado, apresenta ao centro um personagem sentado,que parece escutar uma narração (representando provavelmente o encomendador da peça), rodeado por quatro figuras também sentadas, provavelmente dois narradores “ as figuras diferenciadas, a verde e negro, que assumem uma postura mais activa, encenada“ e outros dois ouvintes “ a azul, como a figura central, e numa pose mais contemplativa”; entre as figuras foram desenhadas palmas decorativas, em disposição radial. Na borda interior foi gravada uma pseudo inscrição em caracteres a branco sobre uma barra de fundo azul, numa altura em que a caligrafia assume um valor significativo na arte islâmica.
Na borda exterior, uma inscrição em carateres nashki reproduz um poema do famoso poeta Motanabbi, que morreu no ano 968 d.c., situação comum na iconografia persa dos séculos XIII-XV, que representa com frequência poemas heróicos na cerâmica e em iluminuras:
No dia da separação tal foi a minha angústia que o temor tornou o meu corpo velho e decrépito. E a distância trouxe uma separação entre os meus olhos e o sono suave. A minha alma reina num corpo que se tornou delgado como um vime. Se uma brisa passar pela minha roupagem nada ficará a descoberto para descrever a minha magreza bastará dizer que eu sou um ser que tu não descobrirás se eu não te opuser resistência.