25-01-2011Amílcar Cabral: importância dos fundamentos de liderança para o actual contextoO processo democrático cabo-verdiano encontra no actual quadro constitucional sinais de avanço, pelo que se apela aos partidos (com vocação de governo) a superação, – diríamos histórica – dos pressupostos redutores e pretensiosos de apropriação exclusiva de um património de carácter universal, como é o legado de Amílcar Cabral, e os valores que simboliza. Assim, adoptar ipso facto de forma descomplexada e sem pré-conceitos ideológicos o património da nação… Passados trinta e oito anos sobre o assassinato de uma das figuras políticas africanas e mundiais mais proeminentes da década de sessenta do século XX, Amílcar Cabral, os seus fundamentos de liderança política, no contexto da luta pela independência da “África dita portuguesa”, podem hoje – uma vez analisados e ponderados no seu contexto histórico – servir de ideário político susceptível de se debitar certos princípios e valores propiciadores de melhorias nas formas de lideranças, no actual contexto das sociedades políticas guineense e cabo-verdiana. Com efeito, nos finais dos anos cinquenta e inícios de sessenta do século passado as independências de alguns países das antigas colónias francesas, os casos da Guine Conacry (1958), do Senegal (1960), da Argélia (1962), ou da antiga colónia inglesa como o Gana (1957), de pronto se constituíram importantes factos políticos que influenciaram sobremaneira as lutas dos movimentos de libertação das então províncias ultramarinas portuguesas. Todavia, a guerra da libertação ou a incitação à violência por parte dos movimentos de libertação, antes de mais, enquanto fenómeno político, deve ser entendida na acepção de Clausewitz: como fenómeno que nasceu duma situação política e sempre esteve vinculado a um projecto ideológico – a independência Nacional. Como líder do Partido Africano para Independência da Guiné e Cabo-verde, Amílcar Cabral promoveu em escritos e ensinamentos, a pedagogia de valores e de princípios modeladores da sua liderança política. Condenou: i) o oportunismo, em teoria e na prática; ii) o apego ao poder (portanto, aqui implícita a ideia da rotatividade); iii) o culto de personalidade, valorizando todos os contributos coincidentes com a edificação de um projecto comum; iv) a demagogia (enquanto falta com a verdade perante o povo). Cabral chegou mesmo a afirmar: “não dizer mentira, e não reclamar vitórias fáceis”. Não obstante, denota-se no contexto da luta armada que muitos dos princípios éticos não foram seguidos nem respeitados por certos fragmentos do partido, antes do Congresso de Cassacá e mesmo anos depois do primeiro congresso. A liderança política do líder do PAIGC revestiu-se de uma necessidade constante de legitimação de toda a acção (do PAIGC) nas instâncias internacionais como a ONU designadamente, pressionando o cumprimento por parte de Portugal da resolução 1514 de Dezembro de 1960 – a também chamada resolução de Outorga da independência. Enquanto líder, Amílcar Cabral assumia como condição fundamental da vida política, a institucionalização acima do personalismo, o que garantiria o sucesso político e capacidade institucional das organizações. Para Cabral, um líder que fizesse jus a esse título seria capaz de construir uma organização política que sobrevivesse e atingisse as metas estabelecidas, mesmo com a ausência do próprio líder. No seu entendimento ninguém era insubstituível no PAIGC, por isso moldou-o (durante a guerra de Guiné Bissau) juntamente com os seus camaradas de modo a permitir uma divisão de trabalho entre os membros, de tal modo que a acção colectiva de todos garantisse o sucesso. Isto explica, em parte, o facto de a sua morte não ter enfraquecido muito o PAIGC e nem a luta armada, como muitos esperavam. Todavia, no período pôs independência, o uso da violência na sociedade política da Guiné-Bissau como forma de resolução de diferendos, de que são claros exemplos: o golpe de estado de 14 de Novembro de 1980; os fuzilamentos sem culpa formada, de altas figuras do Estado em 1985 e 1986; o Levantamento militar de 7 de Junho de 1998; a eliminação física de dois Chefes de Estado Maior – General das Forças Armadas em 2000 e 2004; os assassinatos do Presidente da República e do CEMGFA em Março de 2009, sempre assumiu os contornos de uma certa instabilidade política. Contudo, para a Guiné-Bissau dos dias de hoje, revisitar os fundamentos de liderança em Cabral, constituiria: i) um exercício em prol da unidade e reconciliação nacional; ii) o repensar a estabilidade política através da submissão (efectiva) da componente militar ao político no quadro legalmente estabelecido [porem, a este propósito, - a nosso ver - notou-se recentemente sinais ambivalentes no que se refere a nomeação do «golpista» António Indjai (ex. Vice Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas), para o cargo de CEMGFA, e o consequente arquivamento do processo que envolve o Almirante Bubo Na Tchuto (ex. Chefe da Marinha), factos esses, resultantes do Levantamento de 1 de Abril de 2010]; iii) acreditar nas instituições que gozam da legitimidade popular, valorizando os seus princípios em detrimento de lógicas de personificação do poder; iv) o aproveitar do positivo desempenho macroeconómico e o perdão da dívida pública externa, para um repensar o interesse do povo, através da mudança de atitude da elite militar e política na assumpção do respeito pela res publica (coisa pública). Já relativamente ao caso cabo-verdiano, o pôs independência foi marcado por uma relativa estabilidade, após quinze anos da predominância de um sistema de partido único, segundo a qual o partido assumia uma postura vanguardista perante o Estado e a sociedade, com degenerações na restrição dos direitos e liberdades fundamentais, somado os vinte anos de vivência democrática num sistema multipartidário, estribada numa democracia do tipo constitucional. Porem, julga-se seguro afirmar que, hoje revisitar os fundamentos de liderança reclamados por Cabral (num determinado contexto histórico), significaria para a sociedade política cabo-verdiana: i) um alerta para uma perigosa tendência de personificação e «endeusamento» das lideranças partidárias no contexto dos dois principais partidos do sistema político cabo-verdiano, cenário esse, muito propenso a que os partidos na prática se tornem, em boa medida, reféns dos seus líderes, especialmente em cenários de vitórias eleitorais; ii) o repensar a perspectiva, quanto a nós, também ela preocupante em que o poder (aqui entendido como principal objecto da ciência politica) é percepcionado pela elite política (ou parte dela), por segmentos de sociedade, mais como um processo de ascensão socioeconómica e de ostentação de status tendente ao tecimento de uma certa rede oligárquica de interesses (individuos, famílias, empresas…), do que um exercício singelo de servir os cidadãos (aqui equivalendo ao povo no contexto e na acepção de Cabral); iii) o conformar a acção política de certos políticos com princípios éticos constitucionais, ao invés de opções pelos calculismos que visem emitir sinais por vezes contraditórios ao eleitorado em que não raras vezes a fronteira entre o legal e o ético se revela demasiada conflituosa, e evitando também certas práticas políticas em relação aos quais os eleitores possam aperceber-se que todos os meios justificam os fins; iv) a realização efectiva das igualdades de oportunidades para todos, nas administrações públicas e nas organizações da sociedade em geral, ancorada na méritocracia (assegurando assim uma igual participação das mulheres nos lugares cimeiros, orientação cara ao pensamento de Amílcar Cabral). O processo democrático cabo-verdiano encontra no actual quadro constitucional sinais de avanço, pelo que se apela aos partidos (com vocação de governo) a superação, -diríamos histórica – dos pressupostos redutores e pretensiosos de apropriação exclusiva de um património de carácter universal, como é o legado de Amílcar Cabral, e os valores que simboliza. Assim, adoptar ipso facto de forma descomplexada e sem pré-conceitos ideológicos o património da nação, na sua verdadeira acepção, e que melhor dignificaria o (a) cabo-verdiano(a) se tomado como uma marca extraordinária de projecção estratégica da nossa influência no mundo, a par da nossa música, literatura (isto é, da nossa riqueza e diversidade cultural), bem como dos princípios e valores do Estado de Direito democrático com relação aos quais escolhemos caminhar. Em suma, dissecar os fundamentos de liderança em Amílcar Cabral, sobre os quais edificou-se grandiosas obras, é ter lucidez e visão crítica sobre o percurso do pensador genuíno, que não possuía todas as soluções nem todas as certezas; do revolucionário autêntico, com virtudes e fraquezas, que gerou unanimidades e discordâncias. Igualmente, a grandeza de valorizar um acervo intelectual e um percurso de liderança política e humanista singular, em cuja lição – quanto a nós – só servirá a actualidade política se visto não como um mito, outrossim, como um extraordinário africano que saldou a sua dívida para com os seus povos, no contexto da sua época. Hermenegildo Baptista Carvalho Projetoproafrica@gmail.com
Fontes bibliográficas: 1.Tal modelo «Partido vanguarda» que vingou em largos anos em Cabo-verde no pós independência, muito tributário do conceito leninista do partido, terá sido aprofundado no terceiro congresso do PAIGC, em 1977.Com efeito, foi importado de um contexto específico (o da guerra colonial, nas zonas libertadas da GB) onde a sua implantação/adaptação obedeceu a um projecto concreto, em cujos objectivos foram eficazmente atingidos (a conquista das independências da GB e de CV). CABRAL, Amílcar (1977), A Prática revolucionária: Unidade e Luta, volume II, Lisboa, Seara nova. PASQUINO, Gianfranco (2005), Curso de Ciência Política, Principia, publicações universitárias e científicas. CARDOSO, Carlos (2005) «Revisitando a problemática de liderança política no pensamento de A. Cabral», Praia, II simpósio internacional Amílcar Cabral. RUDEBECK, Lars (2005) «Uma interpretação das teorias de Cabral sobre a democracia», Praia, II simpósio internacional Amílcar Cabra. http://marxists.anu.edu.au/archive/padmore/1947/pan-african-congress/ch05.htm |